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Miguel Sanches Neto

A energia que move o mundo

Para Garcia Márquez, América Latina produz imaginação criadora | Cesar Rangel/Divulgação
Para Garcia Márquez, América Latina produz imaginação criadora (Foto: Cesar Rangel/Divulgação)

Ninguém suporta discursos. Até os mais curtos ainda são excessivamente longos. Ouvimos por educação, pensando em coisas mais interessantes. Mesmo como modalidade literária, ela está fadada a ser proscrita, pois a modernidade não aceita o otimismo, chave dessas falações públicas. É esta recusa que Gabriel Garcia Márquez busca no título do volume em que recolhe sua pequena produção oratória: Eu Não Vim Fazer Um Discurso, frase que aparece numa saudação escolar de 1944, já denunciando um autor avesso aos formalismos: "sempre considerei os discursos como o mais terrorífico dos compromissos humanos" (p.33).

Na vida de um grande escritor, como é o seu caso, estas são no entanto situações inevitáveis. Garcia Márquez foge, porém, da linguagem e da temática grandiloquentes, procurando pensar como escritor. Mesmo quando fala de assuntos mais técnicos, como no imperdível "Jornalismo: A Melhor Profissão do Mundo", é sempre do ponto de vista do artista, valorizando nesta profissão a criatividade e a prática, em detrimento das formações teóricas. Assim, o que há de importante nesses discursos (produzidos entre 1944 e 2007) é a própria negação de uma gramática, evitando com isso o embalsamento da linguagem.

Embora soe um tanto obsoleta a sua defesa de Cuba, é possível compreender que ele não valoriza isoladamente um regime, mas toda a América Latina e o Caribe. Estas são as coordenadas de suas percepções. Ele recorda a vida de poetas, escritores e políticos da América Latina, mas principalmente se coloca num papel de contracolonizador, que avalia tudo a partir de sua localização cultural, positivando o que é tido como desprezível na Europa e nos Estados Unidos.

A permanência numa temporalidade medieval, criticada pelos defensores do progresso, é para este Prêmio Nobel de Literatura a nossa força: "A reserva determinante da América Latina e do Caribe é uma energia capaz de mover o mundo: a perigosa memória de nossos povos" (p.36). É esta energia que habita os seus livros altamente memorialísticos, levando nossa latitude periférica a uma situação de protagonismo: o número total de leitores de Cem Anos de Solidão seria equivalente a um dos 20 países mais populosos do planeta, o que demonstra que García Márquez fez de Macondo uma potência mundial.

O outro componente fundador de nossa cultura é a criatividade. Em uma época corrompida pela repetição industrial de temas e linguagens, de maneiras de ser e de olhar, e ao mesmo tempo obcecada em renovar-se continuamente, a nossa capacidade inventiva também tem um sentido revolucionário: "Entramos, pois, na era da América Latina, primeiro produtor mundial de imaginação criadora, a matéria mais rica e necessária do novo mundo" (p.53). Já não é apenas a riqueza material da América Latina que conta, mas também a nossa cultura.

A imaginação é tão intensa aqui que não permite que sejamos apreendidos a partir de traços fixos. Teríamos uma identidade móvel, em metamorfose, como se vivêssemos um eterno de princípio do mundo, numa dimensão temporal mítica: "Talvez o seu [da América Latina] destino edípico seja continuar procurando para sempre a sua identidade, o que será um sinal criativo que nos faria diferente do resto do mundo" (p.81). Enfim, somos a heterogeneidade em processo.

Para além do artificialismo desse tipo de texto, os discursos de Gabriel Garcia Márquez, no geral muito breves, podem ser lidos como a explicação não apenas de uma obra, mas do poder inventivo que nunca se deixa cristalizar, nem mesmo quando vestido com as roupas formais deste gênero.

Serviço:

Eu Não Vim Fazer Um Discurso, de Gabriel García Márquez. Tradução de Eric Nepomuceno. Record, 128 págs., R$ 19,90. Discursos.

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