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"Estela tem os olhos azuis como certas manhãs de verão. Mora num chalé de madeira com os pais e os avós, e estou sempre com ela. Depois da aula, caminhamos pelo bairro fazendo planos. Aos quinze anos a gente tem a mania de fazer planos, de prometer o impossível, de se preocupar com os outros. Principalmente de se preocupar com os outros."

Um edifício é uma árvore que não cresce dos nutrientes tirados por suas raízes de concreto – falsa árvore, portanto, que encobre o chão, ignorando a fertilidade do solo. Foi isso que pensei quando, depois de tantos anos, acabei voltando ao bairro de minha infância, guiado por um corretor de imóveis que insistira para eu conhecer um edifício novo, com apartamentos amplos. Confesso que achei a idéia interessante. Voltar para Curitiba me deixara disposto a reviver a cidade, como se a ausência de 30 anos fosse insignificante, uma frágil linha entre o passado e o presente.

Durante minha estada em São Paulo, terminei o colegial, cursei a universidade e entrei para o setor de propaganda. Agora voltava para montar minha própria agência. Mas não desejava apenas melhorar profissionalmente, queria livrar-me de uma solidão que me acompanhava desde a adolescência.

Ao chegarmos ao local do edifício, reconheci a rua. Apenas algumas casas daquela época sobreviveram. A maioria havia sido destruída para dar lugar a prédios. Dos chalés de madeira não havia nem sinal. E o edifício de apartamentos que eu fora ver, para completar este retorno, estava construído exatamente no terreno do antigo sobrado.

O corretor me levou para o décimo andar falando com entusiasmo das vantagens do imóvel, mas não prestei atenção. Havia cruzado um limite, estava em outro lugar.

Estela tem os olhos azuis como certas manhãs de verão. Mora num chalé de madeira com os pais e os avós, e estou sempre com ela. Depois da aula, caminhamos pelo bairro fazendo planos. Aos quinze anos a gente tem a mania de fazer planos, de prometer o impossível, de se preocupar com os outros. Principalmente de se preocupar com os outros.

Nosso local predileto é o sobrado. O velho Eurico sempre nos recebe alegre. Se não está na horta, cultivando couves (um velho entre altos pés de couve é tão bonito quanto um campo de trigo), está lendo num dos cômodos da casa, que já se encontra praticamente em ruínas.

– Não vale a pena consertar, meus filhos, nada pode ser conservado perfeito, nunca se esqueçam disso.

– Nunca esqueceremos – é a voz baixa de Estela que acabamos de ouvir.

– Até os livros se tornam ruínas – ele diz.

– E como sabemos quando um livro virou ruína? – agora que você já conhece a voz da Estela, deve ter percebido que quem está falando é ela.

– Quando você não tem mais vontade de abrir um livro e ler um trecho ele já está acabado, só não se esfarelou ainda porque o papel é bom, mas o conteúdo é um monte de pó.

– Ah, então é por isso que nas estantes de casa há tanto pó!

Todos rimos da brincadeira de Estela.

O sobrado é nosso segundo lar. Abandonamos Eurico às suas leituras ou às suas hortaliças e nos perdemos pelos cômodos. Em muitos pontos da parede, o reboco escuro já caiu, deixando exposta a ossatura de tijolos. As tábuas do forro estão despencando, os poucos móveis, estragados. O bairro inteiro acha que o velho é maluco. Tem poucas amizades, não sai de casa, nem para ir ao bar. Fica lendo o tempo todo. No lugar do jardim cresce um mato rebelde. A cada vento, a casa sobrevive mais destelhada. Em dia de chuva, é difícil encontrar cômodo seco. E o velho passa a maior parte do tempo na rede. Suas roupas estão desbotadas e ele anda sempre descalço.

– Faz mais de dez anos que não uso nem chinelo – e, para provar, mostra o cascão da sola. – Posso pisar em brasa que não sinto nada, meus filhos, os próprios pés criaram uma proteção, não careço destes calçados que apertam os calos.

Quando o conhecemos, contou-nos a história do sobrado.

"Eu tinha trinta anos e era próspero comerciante, ainda solteiro, porque queria construir uma casa antes de me casar; comprei este terreno e mandei riscar a planta, contratei mestre de obra e começamos o serviço; tudo foi muito lento, eu ajudava a construir, porque queria morar em algo que fosse meu de verdade, que tivesse os sinais de minhas mãos, mas à medida que o sobrado era levantado eu notava que ele ia se deteriorando; o reboco trincou, o forro ficou torto, as telhas escureceram; uma força invisível ia desfazendo aquilo que, com tanto sacrifício, a gente construía; o que mais me desesperava era ver as rachaduras na parede; elas cresciam, se ramificavam; foi nesse momento que descobri: não podíamos conservar as coisas perfeitas, a deterioração é a lei que impera em tudo; não há sentido em gastar a vida restaurando as coisas, temos que conviver com as ruínas, sem escondê-las, até que, familiarizados, possamos ignorá-las; o homem também é uma ruína em construção, nunca se esqueçam disso, meus filhos."

O sobrado jamais foi concluído, do jeito que estava ficou. Durante anos os andaimes permaneceram encostados na parede, até que, totalmente podres, voltaram à terra. Eurico vendeu a loja e se mudou para a casa inacabada, de onde jamais saiu. Cultiva a horta e relê seus poucos livros. O sobrado ficou, para ele, como símbolo de perenidade.

– Só dura aquilo que não luta contra a natureza – ele sempre nos diz.

Ou:

– Tudo é abandono, meus filhos, não disfarcemos.

Hoje é minha última visita ao sobrado. Quero me despedir, mas não tenho coragem de falar que vou para São Paulo. Eurico prepara a terra para plantar hortaliças. Estela come, fazendo muito barulho, uma cenoura recém-arrancada do canteiro. A tarde tem uma suavidade odiosa. Tudo bonito demais para eu estragar com uma despedida. Mas Eurico pressente algo.

– Quero que vocês fiquem com o sobrado quando eu morrer.

– Não fale assim, Eurico! – é uma voz com hálito de cenoura.

– Sei que vocês são os únicos que manteriam o sobrado sem alterações; e aqui é o lugar de vocês dois.

Estela aponta um beija-flor num dos canteiros, interrompendo a conversa. Ficamos mais algum tempo juntos, depois deixamos o sobrado e cada um toma um dos sentidos da rua. Fico olhando para trás muito tempo, mas Estela segue decidida para sua casa e para o passado.

A porta do fusca estava aberta, o barulho do motor me despertou para a necessidade de ir embora.

– Este é um bairro de futuro, me diz o corretor.

Eu concordei, fechando a porta e observando a paisagem que começava a se movimentar.

O corretor me deixou no escritório, onde encontrei muito serviço. À noite, no hotel, resolvi continuar minha vida de hóspede. Não conseguiria morar definitivamente num apartamento ou numa casa.

Desde então, nunca fico mais do que seis meses num hotel, mudo-me depois de passar por todos os quartos, sem deixar marcas e nem me apegar às coisas. Mesmo assim, uma sombra mutilada que me habita.

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