Em um mundo ensandecido, a razão soa como uma forma extrema de loucura. Esta constatação talvez possa resumir um dos melhores livros do inglês Ian McEwan Amor sem Fim e, consequentemente, um dos melhores romances contemporâneos. Publicado originalmente em 1991, num período de euforia mística, própria da mudança de milênio, o livro contrapõe duas posturas, a da ciência e a da mitificação.
Casado com a professora de literatura Clarissa, Joe Rose é um ex-cientista que se tornou um bem sucedido divulgador de ciência. Clarissa estuda a obra e a vida do poeta romântico John Keats, cuja biografia é pouco conhecida. Ela tenta encontrar algumas cartas inéditas do poeta, e está voltando de uma viagem de trabalho. O amor é o tema de Keats, e ela avalia a sua própria vida conjugal pela medida dos versos dele. Frustrada com as aulas na universidade, projeta neste seu estudo todas as possibilidades de realização profissional, e também pessoal. Joe sente que está competindo com um grande adversário, e faz de tudo para manter a bela esposa ao seu lado.
Ao recepcioná-la com um piquenique no campo, ocorre um acidente que os afetará. O avô, que levara o neto para um passeio de balão, perde o controle do balão, que cai e logo é arremessado de volta só com o menino. Os que estão em terra tentam segurar o balão, mas há um momento que quase todos largam as cordas e ele volta a subir, movido por uma rajada de vento. Somente um médico atlético persiste, sendo levado junto para depois despencar das alturas e morrer.
Esta tragédia gera uma crise. Joe se culpa por ter largado a corda. Clarisse se lembra que não pode ter filhos. E um jovem, Jed, pensa que o incidente é uma mensagem divina, e se apaixona perdidamente por Joe Rose. O acaso trágico cria um vínculo entre esses seres. Joe, em meio ao transe da morte, mantém o seu espírito prático e racional e isso é tido como um sintoma de delírio.
Um delírio pelo qual ele será acusado quando tenta explicar à mulher e à polícia que está sendo perseguido e constrangido por um homem que fica plantado na frente de sua casa o tempo todo. O romance assume um ritmo tenso ao narrar a devoção mística de Jed por Joe.
Ninguém acredita em Joe Rose, por mais que ele busque provar que algo muito perigoso está acontecendo com a vida dele. O próprio leitor passa a desconfiar da sanidade do narrador. Tudo seria uma reação paranóica à tensão deste contato violento com a morte, e também uma manifestação de sua frustração de não ser um cientista.
O romance ganha ares de policial, e o narrador tem que resolver o enigma sozinho. Mais do que nunca, este autor de artigos e livros sobre os mais variados assuntos, de dinossauros a Darwin, de física quântica ao telescópio Huble, deve usar a sua capacidade intelectual.
Estudando o comportamento do homem que o persegue, ele identifica nele uma obsessão sexual com conotações religiosas, uma síndrome que faz com que a pessoa pense que tudo que o outro diga ou execute seja tomado como mensagens amorosas. É a racionalidade de Joe, o seu poder de compreensão e de estudo e a sua seriedade que o salvam, restabelecendo a verdade.
Num enredo angustiante, McEwan capta o clima do fim do milênio, reafirmando o valor da razão, do afeto e da ética. Outro movimento contra a loucura que Joe empreende é se aproximar da viúva do médico e de seus filhos, enfrentando o sofrimento desta família depois da perda.
O romance acaba com uma conversa técnica e poética ao mesmo tempo. Em um piquenique, Joe explica ao casal de órfãos a formação do rio e seu movimento, uma parábola da passagem do tempo. Sem poder ter filhos, eles adotam simbolicamente essas duas crianças. A temática da infância é muito presente em McEwan, como em O Jardim de Cimento (1978) e A Criança no Tempo (1987). Pois é a responsabilidade com o outro que produz o antídoto contra a loucura.
Serviço: Amor sem Fim, de Ian McEwan. Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras,294 páginas, R$ 46. Romance.
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