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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Já não tinha idade para tentar certas aventuras. Mesmo assim, começou a praticar caminhadas e logo estava fazendo pequenas visitas aos mor­­ros da região.

De uma árvore encontrada nestas aventuras, retirou um galho e fez um bordão. Sempre sonhara com um bordão, talvez reminiscências de filmes religiosos vistos na infância.

Foi da infância que recuperou um canivete para abrir a casca verde do galho, deixando a madeira lisa e úmida à mostra, e a colocando para secar na sacada do apartamento. Mas o bordão só se tornou bordão depois que suas mãos alisaram a madeira, dando-lhe a consistência de matéria polida.

Com este cajado, um embornal que ganhara em uma feira de livro, tênis gastos e encardidos, ele saía sozinho pelas montanhas da redondeza.

Houve vezes de não voltar para dormir em casa, improvisando um abrigo no oco de alguma árvore ou numa loca minúscula. Havia sempre a broa, o vinho, a água e frutas.

A família se irritara tanto com os novos hábitos que ele passou a ser quase um estranho. Mal respondia às perguntas para não discutir a razão desse desatino.

A mulher lembrava de seus problemas de saúde. Poderia acontecer algo na caminhada. Morreria sozinho, dando o maior trabalho para recuperar o corpo.

E ele, irônico:

– Todo cadáver sempre é irrecuperável.

– Não dá mesmo para falar sério com você.

O filho tentou dissuadi-lo.

– Pai, pense em seus netos – e apontava dois meninos de olhos melancólicos.

Mas o Profeta (assim a família passou a chamá-lo) insistia em suas expedições:

– Não tem gente que gosta de pescar no final de semana? Esta é minha pescaria.

– Mas e os peixes ao final da jornada? – ironizou a mulher.

– Eles vêm em estado de fóssil.

– Enlouqueceu mesmo! – esta era esta a opinião de todos.

E ele achou melhor assim.

Em suas escaladas, não tinha pressa. Subir uma montanha com as pernas bambas. Sentar em pedras. Rogar por árvores de copas acolhedoras. Deitar no capim com o sol no rosto. Ver algum animal silvestre. Caminhar ao som das aves inquietas. E, lá da montanha, observar a cidade.

No ponto mais alto em que suas pernas cheias de varizes o levavam ele proferia as Palavras. Gritava para o alto conversas co­­muns. O que tinha dito o homem do mercado. Como estava boa a comida ontem. O trecho de um livro lido na semana e que ele havia decorado. E mais um rosário de banalidades. Falava da melhor lua para semear certas plantas. Dava a re­­ceita de um remédio caseiro infalível para a diabete. Recitava versos de seus poetas preferidos.

A montanha ouvia tudo em silêncio, sem ousar nem mesmo um eco.

Quando se cansava, ele sorvia um longo gole de vinho, rasgava o pão e o mastigava com dentes de fera. Depois, se deitava em qualquer canto para recobrar as energias.

Durante a semana, passou a ler e reler seus livros, separando os melhores trechos. Como já não havia tempo para decorar as passagens marcantes, levava folhas impressas com esta antologia. E, no alto das montanhas, ele as encarnava.

Sua pele escureceu. Os cabelos ganharam uma cor suja. O corpo definhou. Tornou-se ainda mais silencioso. O mundo próximo se fez mais quieto porque ao redor de um louco os movimentos cotidianos são suspensos – embora ele não fosse propriamente louco. A loucura, mesmo quando indevida, tem este dom de fazer com que as horas se tornem neutras.

Em uma de suas fugas, encontrou o neto. Fugira de casa e queria ir com o avô. Conhecer o vento das montanhas.

Já era quase moço. O avô sabia merecer aquela companhia. Mudos, subiram morros, cruzaram rios lajeados, furaram matas, cercas de arames farpados, e enfim chegaram a uma localidade alta. O neto estava exausto e logo dormiu.

Acordou no meio do ritual do avô, que gritava seus textos para um céu surdo. O neto se sentou numa pedra e apreciou aquela cena. Pouco entendia do que era dito. O vento carregava as palavras para o outro lado. De vez em quando, um termo qualquer chegava até ele: ruínas de um discurso que ele só podia imaginar pelos gestos do avô. Falava talvez de amor.

Quando se completou o ritual, o avô rasgou as folhas em minúsculos pedaços e as soltou como borboletas brancas ao vento. Voltando-se para seu companheiro de escalada, explicou:

– Algumas frases, por um desvio qualquer, conseguem deixar o nosso planeta, suas ondas ficam vibrando numa viagem errante pelo universo. Quando se deparam com obstáculos, reverberam e podem voltar ao ponto de origem.

O neto não sabia o sentido exato daqueles termos, mas estranhamente compreendia tudo que o avô havia dito.

Desceram a montanha mais leves. A noite ia pontuando estrelas que, segundo a sua professora, eram luzes de astros extintos, que havia anos vinham em nossa direção.

Se tivesse sorte, poderia ser ele um dos futuros receptores das palavras que o avô semeara no nada.

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