Romance sobre a impossibilidade de se escrever um romance, A Cozinha da Revolução, do chinês Ma Jian (Record, 2011) não é, no entanto, uma simples narrativa metalinguística. Em um conjunto de contos independentes, mas com uma amarração sutil, surge uma estrutura que concede alguma coesão romanesca à obra, que vai da história de um empreendedor que transforma o forno de cerâmica de uma escola de artes em crematório particular, acabando por cremar a mãe viva num momento de epifania, ao delírio de um funcionário cumpridor de suas obrigações comunistas, que começa a conversar com um cachorro que lhe tira as certezas revolucionárias o animal se tornara leitor de filósofos estrangeiros. É este universo alegórico e sarcástico que se sobressai, corroendo as imagens oficiais da China no final do século 20.
Se todas as histórias são interessantes, compondo um painel do país, a mais dolorosa é a do pai que, não podendo mais ter descendentes (por causa da política governamental do filho único), resolve abandonar a filha retardada para, assim, conseguir a autorização de nova gravidez. Ele tenta de todas as formas perder a menina em lugares públicos, mas quando vê que ela corre algum perigo, resgata-a. Nesta atividade, estabelece uma relação amorosa muito bonita com ela, numa versão às avessas da realização paterna: "Num mundo descontrolado, só as pessoas retardadas podem encontrar a felicidade" (p.209). Como estas histórias recusam qualquer idealização, seja a amorosa ou a social, elas não tendem para o meramente político, embora este esteja muito presente.
O momento vivido pelos personagens é o da Política de Portas Abertas, quando ocorre a entrada dos valores ocidentais. Os que enriqueceram aderem a hábitos vistos como decadentes: leem Hemingway, Salinger, Gabriel Garcia Márquez e Milan Kundera, imitam roupas e penteados, usam cafeteira elétrica, tomam Nescafé e vinho francês. E isso cria um choque com a grande maioria da população, condenada à sopa de cabeça de peixe e a outras iguarias.
Entre estes dois extremos coloca-se o protagonista, um escritor profissional, intelectual pago pelo partido, que tem de atender à encomenda de uma história edificante sobre um herói da revolução. Mas o que ele deseja mesmo é dar um outro status aos seus vizinhos: "Quero transformar aquelas vidas numa obra de arte, mesmo sabendo muito bem que elas jamais se darão ao trabalho de ler" (p.12). Estas vidas, logicamente, não cabem em sua escrita, pois não são edificantes.
Assim, o escritor as conta secretamente a um amigo, um doador de sangue profissional que fez fortuna (numa escala comunista) trocando seu sangue por cupons de alimentação e por dinheiro. Depois de um desfile de seres sofridos, de pessoas atormentadas pela presença repressora do partido e pelas dificuldades materiais, que tornam todos perversos e desonestos, há a defesa de uma literatura que seja produzida não na tranquilidade dos escritórios oficiais ou nos apartamentos isolados do burburinho das ruas por aqueles que querem se elevar acima do mundano, mas no contato com os sofredores. Diz o doador de sangue: "Você se engana de pensar que toda história tem que estar associada à morte. O problema não é a morte, mas a vida, e a vida é apenas um ato de resistência; é preciso trincar os dentes e encará-la" (p.199). Numa inversão simbólica de papéis, o romance adiado vai, ironicamente, começar a ser escrito pelo doador que vende o seu sangue mas não a sua mente. Antes de ser linguagem, um texto é uma postura.
Serviço
A Cozinha da Revolução, de Ma Jian. Tradução de Heloísa Mourão. Editora Record, 256 págs. R$ 39,90. Romance.
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