A primeira surpresa foi que tiveram que tomar vacina contra febre-amarela na fronteira. Entregaram os braços à agulha e prepararam-se para a grande aventura conjugal: viajar no Trem da Morte. Recém-casados, tinham sonhado com uma lua-de-mel diferente, uma viagem de mochila para Machu Pichu, no Peru, cruzando a Bolívia pelo chão.

CARREGANDO :)

Seguiram de ônibus até Campo Grande, para pegar o trem com destino a Corumbá. Na saída, o vagão deles foi apedrejado. Meio assustado, o marido passou o tempo todo em claro, olhando a noite pantaneira, enquanto a mulher dormia. Iniciava julho de 1988 (logo ele faria 23 anos) e contavam com o mês inteiro para percorrer um caminho que os levaria ao coração da América incaica.

Em Corumbá, o visto para entrar na Bolívia. Chegaram de táxi à fronteira, onde foram vacinados como gado; outro táxi os levou a Puerto Soarez. A passagem era de segunda classe, mas escolheram assentos próximos. Como se esperava, o trem atrasou. Quanto mais atrasado, mais gente entupia a pequena estação. Conversando com um boliviano, a dica:

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– Expulsem quem estiver no lugar de vocês.

Empurrando senhoras e velhos, o casal conseguiu entrar no trem. Mas esta determinação não resolveu muita coisa. Os lugares estavam tomados por caixas. Ficaram com os bilhetes na mão, sem saber a quem reclamar. Então viram que as pessoas simplesmente tiravam as bagagens dos assentos e as jogavam no corredor. Fizeram o mesmo e logo descansavam no banco duro do trem, a mochila sobre as pernas, pois não havia lugar no bagageiro. O corredor ficou repleto de caixas e malas e pessoas. Seria impossível uma viagem assim. Houve um baque, o trem não sairia. Mas as rodas se destravaram e logo a paisagem passava lentamente pela janela.

Depois de uns minutos, enquanto todos se ajeitavam, empurrando pacotes sob os bancos e entre as pernas dos passageiros, ele conseguiu amarrar a mochila na grade do bagageiro. Seriam 20 horas de viagem até Santa Cruz de la Sierra. Em cada vilarejo, o trem parava, crianças e mulheres apareciam vendendo naranjas, carne, mandioca cozida e sucos. Os homens desciam e davam um espetáculo urinário: mijavam em pé, as costas voltadas para as janelas. Os banheiros não podiam ser usados por estarem cheios de mercadoria.

À noite, ele se levantou para esticar as pernas. O vagão não tinha iluminação. A selva tão escura. Os corredores pareciam agora vazios. Quando deu o primeiro passo fora do meio metro quadrado que ocupavam, ouviu um grito e algo se mexendo sob seus pés. Pulou para frente, despertando novo grito. Os que viajavam em pé estavam agora dormindo no chão, num grande amontoado humano. Pedindo desculpa, o marido voltou a seu assento.

Perto da meia-noite, em Joberê, um vagão descarrilou. E ninguém deu a mínima importância para isso. Somente ao amanhecer, o trem voltou a mover-se, e não se ficou sabendo qual a providência tomada para colocar o vagão rebelde de volta nos trilhos. Com isso, a viagem atrasou ainda mais. A chegada a Santa Cruz aconteceu 30 horas após a partida.

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Na entrada da cidade, iniciou-se uma movimentação misteriosa. Os bolivianos falavam entre si, mexiam nas caixas, nas malas. Subitamente, gritaram com o casal, mandando-o sair dos bancos, e abriram a janela, começando a jogar as mercadorias para fora. No meio dos matos, pessoas recolhiam o que os amigos despachavam de maneira tão violenta. A polícia apareceu, prendendo alguns receptores e apreendendo mercadorias, mas a maior parte deles conseguia livrar-se dos guardas e partia em peruas e camionetas. O casal resolveu ajudar na tarefa, passando caixas para os homens que miravam as moitas. Em poucos minutos, o trem liberou o excesso de carga e a viagem foi concluída em paz. Na estação, os policiais da aduana revistavam tranqüilamente as malas.

Os dois saíram pela cidade. A primeira impressão foi de frustração. Queriam a cultura indígena e encontravam uma paisagem urbana parecida com a do Brasil. Santa Cruz não era muito diferente de Maringá.

Andando pelas ruas, encontravam uma ou outra coisa pitoresca. Mas, como não tinham aliviado a bexiga desde Puerto Soarez, por não haver banheiro nas paradas nem no trem, tiveram que procurar com urgência um lugar para esta necessidade e logo estavam em um restaurante imundo. Liberados da pressão fisiológica, resolveram almoçar ali mesmo. O dono indicou um hotel depois de servir um prato qualquer. Que eles acharam delicioso.

No hotel, perguntaram se havia água quente para o banho e a proprietária garantiu que sim, cobrando a diária. Subiram ao quarto e, ao abrir o chuveiro, saiu apenas água gelada. Depois do banho rápido, conhecer a cidade! A cerveja era boa, a comida nem tanto. Vencido o desconforto da noite, resolveram seguir, agora de ônibus, até Cochabamba.

Na rodoviária, o casal foi abordado por policiais. Ao ver os passaportes, um deles ironizou: "Oh, são do maior país do mundo!" O desprezo se revelava na maneira de segurar os passaportes. Depois de uma revista minuciosa, deixaram o casal em paz. Entre as várias empresas de ônibus (todas faziam os mesmos destinos), escolheram uma que oferecia serviços especiais e veículos confortáveis – era exatamente do que precisavam.

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Com as passagens na mão, o ônibus só partiria no começo da noite, resolveram comprar suprimentos para a viagem. Em um mercadinho, entenderam enfim o que havia acontecido na chegada do trem. Todos os produtos industriais vendidos ali procediam do Brasil. Com bolachas e chicletes brasileiros na bolsa, sentiram-se logrados. Desejavam a América indígena e não conseguiam chegar a ela.

Mascando chicletes de uma marca multinacional, made in Brazil, ficaram esperando o ônibus, que os tiraria de vez da pátria.