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Passei uma noite em Curitiba, no desconforto de um quarto de hotel. Oswald de Andrade escreveu que "os hotéis parecem roupas alugadas" – Pau Brasil (1925). Eu sempre gostei de ter minhas coisas – minhas roupas, minhas idéias, meu quarto, minha cidade. Ter uma cidade é uma coisa muito relativa, pois me sinto invariavelmente em cidades alugadas, com a sensação de que logo vence o contrato.

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– Você fala mal de todas as cidades por onde passa e depois quer se sentir em casa – me diz meu mestre imaginário, esse inimigo íntimo que trazemos dentro de nós.

Tenho que explicar tudo ao esse homezinho de barba branca e olhos e nariz vermelhos de vinho.

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– Eu não falo mal. Eu apenas falo das cidades sem uma visão idealista.

– Sua visão é, isso sim, pessimista. Nada presta. Ninguém serve. Você não passa de um escritorzinho marrento. Melhor: nem escritor você é. Não é o que estão dizendo por aí? Apenas uma víbora. Pequena e peçonhenta.

Eu poderia dar um murro nas fuças de meu mestre. Mas prefiro a saída diplomática.

– Há dois pessimismos. Um destrutivo e outro construtivo. O meu é do primeiro grupo. Minha visão ácida da humanidade tem um sentido utópico. Criticar para ajudar a mudar, para construir uma realidade diferente.

– Sei. Pode deixar que vou acreditando nesta lengalengagem. Você é apenas um terrorista covarde.

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– Não há terrorista covarde, mestre. O terrorismo exige renúncia total.

– Não só há este tipo de criminoso como estou na frente de um deles. Você atira a pedra nas vidraças e sai correndo, para se esconder sob a cama.

E nós dois rimos.

– Mestre, mestre. E se for o inverso? Se eu for um falso medroso. Finjo ter medo e enfrento tudo com os punhos cerrados.

– Ah, meu filho. Então você ganharia a admiração até deste seu pior detrator.

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Assim concluímos nossa discussão no início daquela noite fria em que eu andava sozinho pelo centro de Curitiba. Contornava o Passeio Público para chegar a um restaurante onde pediria um prato qualquer, com a única condição de ser bem quente.

A cidade tinha uma beleza solitária. Poucas pessoas na rua. As sombras imóveis entre os edifícios. Neste cenário, passei pela casa onde 25 anos atrás funcionava uma pensão, um de meus endereços na capital. Um quartinho sem janela, no térreo, sob a escada de madeira que rangia a noite toda, porque a clientela era mais noturna.

Em 1987, eu estava em minha segunda estadia em Curitiba, começando a trabalhar como professor, sem dinheiro para quase nada. Fazia apenas uma refeição no dia, o almoço, na Casa do Estudante Luterano. Chegava às 11 horas, era sempre o primeiro.

Passo em frente a estes dois prédios, agora decidido a ir ao Shopping Muller, e não mais a um restaurante nas imediações do hotel. Se não estivesse tão cansado, gostaria de andar pela rua XV, tal como em 1983, quando me mudei pela primeira vez para a cidade dos simbolistas. Para quem vinha do calor poeirento, cruzar o calçadão da XV de uma ponta à outra era descobrir um outro país. Um país onde eu seria o imigrante preso às suas origens, aos preconceitos contra sua origem.

Uma sensação de conforto me volta nesta breve permanência na cidade que no passado foi minha, minha como uma roupa de aluguel. Eu podia voltar a ela quando quisesse, bastava me perder pelas ruas, correndo o risco de um assalto. Eu reagiria ao assaltante ou lhe entregaria meus pertences? Poderia ser encontrado apenas no outro dia, jogado num canto de rua, confundido com um mendigo que já não sente a friagem, ardendo no inferno alcoólico de seu próprio corpo.

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Mas eu estava vivendo um mo­­mento de beleza. Adorava a cidade. Era bom ser um imigrante. Nos prédios, umas poucas janelas com a luz acesa. Uma delas seria a minha se eu tivesse permanecido. Mas eu teria perdido este prazer de visitante. Era bom assim. Tudo fazia sentido.

Com um sorriso abobado no rosto, pego o celular e ligo para minha mulher.

– Sabe, estou andando sozinho nas imediações do Passeio Público e lembrei da vez em que você veio me visitar aqui em Curitiba, antes de nosso casamento.

Minha mulher é a pessoa que mais me conhece. Sabe como agir nestas crises nostálgicas do marido. Lembra de algo íntimo, fala como ficou maravilhada com a cidade no inverno. Diz exatamente aonde fomos naquela primeira noite em Curitiba. A um show de poesia.

– Foi quando você começou a entrar em contato com os escritores da cidade – ela diz.

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Trocamos mais algumas memórias, eu desligo e sigo adiante. Logo ali está o shopping. Não gosto de shoppings, lugar que freqüento apenas por pressão de colegas e parentes. Mas agora me encontro sozinho e não sei o que fazer ali. Lembro-me vagamente de que estou com fome. Então vou para a praça de alimentação. Lá, em um dos restaurantes industriais, acho carne, arroz, feijão e legumes. Peço uma Coca-cola – esta bebida para quem largou o álcool. Devoro tudo rapidamente, como se estivesse atrasado. É preciso ser igual a todo mundo. Depois, rodo pelos corredores, olhando produtos, tão distraído que paro na frente de vitrines femininas. Em uma loja, entro. Experimento roupas, converso com o vendedor. Tudo isso é novo para mim.

Compro uma calça e um casaco de veludo, próprios para climas muito frios. A loja logo fecha e tenho um caminho relativamente perigoso para vencer a pé, pois decidi não tomar um táxi. Escolho as ruas mais escuras e vazias, numa intimidade inusitada com a cidade.

Nas mãos, as sacolas com as roupas. É dali que vem este estranho estado de pertencimento?