Ganhei um caderno de capa amarela e páginas sem pauta. É um caderno fino, charmoso, hecho en Barcelona pela Doctor Paper. Não se trata de um caderno qualquer. Ele tem um título enfático que determina o seu uso: Coisas que PROMETO fazer sem falta no próximo ano. No caso, o próximo ano é este no qual já estamos embarcados.
A origem do caderno já é a expressão de um desejo cada vez mais forte (morar em Barcelona), embora saiba da impossibilidade de realizar isto.
Esse tipo de caderno funciona como fonte dos desejos, daquelas em que jogamos uma moedinha para fazer o pedido: que este ano eu consiga parar de fumar.
E lá se foi a arruela de um real. Depois, vamos ver que tal valor, embora mínimo, dava para comprar tantos cigarros desculpem-me a imprecisão, mas não fumo e, por isso, desconheço o valor de carteiras ou de cigarros soltos.
Estou com o caderno desde novembro e não escrevi uma única linha nele. De vez em quando, olhava-o, ameaçando transformar aspirações secretas em palavras, para que, num passe de mágica, elas se fizessem realidade. Saúde. Dinheiro. Viagem. Sucesso etc.
Mas decido agora que este caderno não conhecerá nenhum de meus projetos. Vou usá-lo como rascunho. Anotar números de telefones. Copiar endereços que me dão. Fazer as listas de mercado, explicitando as marcas dos produtos, pois sempre me confundo e acabo comprando o creme de leite que me pediram, mas de uma marca que não é a mais apreciada em casa. Talvez entrem também esses desenhos sem sentido, que fazemos numa reunião chata ou quando atendemos um telefone de alguém que se alonga em suas histórias. Tudo poderá acabar nele. Uma frase ouvida na rua. Versos de um poema lido por acaso no jornal. O nome de uma pessoa do passado que reaparece em nossas recordações décadas depois.
Não me faço promessas neste ano que se iniciou. Não sou senhor de minhas vontades. Tenho alguma determinação, mas a vida vai acontecendo à sua maneira, e não leva muito em conta aquilo que nos falta. Deixarei que ela se vire sozinha, inscrevendo-se em meus dias, com a caligrafia tumultuada das coisas cotidianas, avessas ao capricho falso dos projetos.
No final do ano, talvez joguemos fora estas anotações como um peso morto, talvez guardemos como uma recordação dos dias perdidos. É mais comum, no entanto, que o caderno desapareça imediatamente, pois temos muito papel ao nosso redor. Meu filho poderá alcançá-lo e, em sua sanha de bebê onívoro, devorar suas páginas. Desastrado como sou, poderei derrubar café nele, estragando-o para todo o sempre.
Mas quem sabe eu me sirva dele para escrever um conto, usando um dos muitos lápis que sempre me acompanham. Pois um conto verdadeiro não espera a hora certa e o lugar adequado para nascer. Ele se impõe numa urgência que se assemelha muito ao desejo. Ficamos com a boca seca, aumenta a circulação sanguínea e tudo conflui para um único lugar. E tem quer ser agora.
Enfim, este caderno se prepara para uma existência sujeita a tudo. Igual a nós todos.
Miguel Sanches Neto é escritor.