Já revelei minha obsessão com o balanço de fim de ano. Deixo tudo de lado para zerar as pendências do período, tentando pôr em ordem agenda, leituras, gavetas, arquivos de computador. Tudo para começar o novo ciclo mais leve, sem a sensação de que coisas ficaram não-resolvidas.

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É nesse momento que avalio as amizades que não prosperaram, e vou me desligando emocionalmente das pessoas, até daquelas que eu julgava amar. Sou um tanto cruel nesse item. Amigo para mim ou é amigo ou até logo. Assim, estou sempre me afastando das pessoas.

Resultado: passo o de fim de ano cada vez mais sozinho, para revolta de minha mulher e minha filha.

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– Você não tem amigos – me acusam.

Sou mesmo uma pessoa de poucos amigos. Mais odiado do que amado. Lembro-me de uma passagem das crônicas de Clarice Lispector em que, ao reclamar que a vida exigia muito dela, uma amiga revidou: você também exige muito da vida. É isso. Exijo muito de meus amigos. Nada de favores, nem de dinheiro emprestado, nem de elogios em letra impressa. Quero apenas fidelidade, que me defendam contras inimigos que se proliferam como bactérias.

O fim do ano é o momento das avaliações. Quem soube reconhecer minha dedicação, esse sim merece constância afetiva. Por causa disso e daquilo. Esse não, caiu nessa e naquela tentação. Enquanto vou fazendo esse pequeno julgamento, decido se me comunico ou não com a pessoa. Se não desisto dela – note que minha posição é egocêntrica –, mantenho seu nome em minha agenda, na lista de contatos de meu computador etc. Agora, se resolvo que nada mais tenho para compartilhar com a pessoa, eu a suprimo sumariamente. E cria-se uma distância entre nós. Meu método é afastar-me de uma vez, para que o outro sinta minha ausência – já disse que sou egocêntrico.

Fazer o balanço de fim de ano é, para mim, destruir alguns vínculos mas também criar oportunidade para outros. E estou sempre com muito espaço disponível na agenda. Que venham os novos amigos, que se fortaleçam os laços com os que sobreviveram.

Este é um período de expectativas para mim. Estou começando do zero.

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Esse recomeçar era algo mais retórico do que real, mas este ano tive mesmo que partir do nada.

Sem acreditar em Papai Noel desde os meus 5/6 anos, fui obrigado a afirmar publicamente que ele existe. Esteve em casa na noite do dia 27 de dezembro de 2006. Estava um pouco atrasado, mas isso é justificável. Os compromissos, as solicitações, o congestionamento dos aeroportos e das estradas, tudo isso deve ter influído, nem que apenas psicologicamente, no atraso do Papai Noel.

O importante é que ele veio.

Também não era um homem gordo, mas, ao que tudo indica, alguém franzino, tanto que não entrou pela chaminé e sim por estreita janela.

Chegou no meio da noite, pulou o gradil da casa de meu vizinho e depois o muro de casa e nos fez uma surpresa. Pelos sinais que deixou nas janelas e nas paredes brancas – parece que esse meu Papai Noel não é lá muito dado à limpeza –, trata-se de um menino. Fez a mágica que esse tipo de gente sabe fazer, saltar com desenvoltura, insinuar-se pela sombra, conduzir o corpo magro por pequenas frestas e depois desaparecer.

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Quando me levantei no dia 28, sem já esperar nenhum presente, e me aproximei da biblioteca para mais um dia de trabalho, fiquei em estado de choque. A porta estava arrombada, as janelas do banheiro obscenamente abertas, livros em desordem, gavetas escancaradas, papéis semeados pelo chão.

Como sou uma pessoa insensível, não percebi instantaneamente que o Papai Noel tinha me visitado. Zanzei um pouco pela biblioteca, para enfim dar conta do acontecido. Sumiu meu computador. Restavam os fios pelo ladrilho, como cobras cansadas.

Havia também um travesseiro sem fronha atirado num canto. Parênteses. Mantenho na biblioteca uma cama. E uma rede no lado externo. Tudo para o descanso do guerreiro. O Papai Noel imprevidente não tinha trazido seu saco e o improvisou com a capa de meu travesseiro, levando o computador sem maiores suspeitas, saco às costas como todos os de sua espécie.

Só então percebi a gravidade do presente que eu acabara de ganhar. Não falo do prejuízo de comprar outro computador, um gasto que não estava previsto e que me obrigou a parcelar a compra em seis suaves prestações. E sim dos arquivos que perdi. Centenas de textos: dois romances inéditos, um livro de contos e uma grande variedade de resenhas, crônicas e projetos. Tudo levado pelo bom ladrão. O disquete com os arquivos mais importantes, por ter ficado no drive, também foi junto.

Passei o dia tentando resgatar alguns arquivos, recuperando cópias em papel, mas mesmo assim aqui estou com a vida zerada. Começarei tudo do ponto de partida.

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O irônico é que o velho computador não tem valor de revenda. Meu Papai Noel mirim deve ter conseguido por ele, no máximo, umas 4 ou 5 pedras de craque. O receptador apagou rapidamente todos os arquivos, alguns em que trabalhei mais de dois anos, para instalar jogos.

E os presentes do Papai Noel não ficaram só nisso. Já mandei instalar na biblioteca um sistema de alarme monitorado, tal como tenho em casa. Vou também colocar cerca elétrica. Enfim, estou criando mais obstáculos para os que desejam desfrutar compulsoriamente de minha amizade.