Há uma guerra que talvez poucos tenham percebido. Ela define duas maneiras de ver o mundo, separando nosso tempo em hemisférios mentais antagônicos. Não deixa feridos, não faz prisioneiros, pelo menos não da forma que outros conflitos fazem, mas separa pessoas.
Todos já perceberam que vivemos numa sociedade de emissores, de gente que produz todos os tipos de textos, das falsas memórias de garotas de programa a relatórios de empresas, se é que existe alguma diferença entre esses gêneros. O homem contemporâneo é um escritor, no sentido genérico do termo. Sem se contentar em apenas viver a vida, ele quer fixá-la em letra impressa. Muitos fatores contribuíram para isso, alguns bem evidentes.
O primeiro deles talvez seja a idéia de que um indivíduo é aquilo que consta no seu currículo. É isso que vai abrir as portas do bom emprego, credenciá-lo para receber uma bolsa ou para entrar em uma das academias profissionais das muitas que proliferam impunemente por aí. O currículo é o deus do homem moderno. Todos querem fazer coisas para melhorar o currículo ou divulgar nos blogs. Com isso, escreve-se. Escreve-se muito. De maneira quase insana. E todos escrevem. E quem não escreve, contrata um escrevinhador de plantão, dos muitos disponíveis formados em jornalismo e/ou oriundos das oficinas literárias.
Outro fator que define esse apogeu da palavra escrita é o advento do computador. Já não conversamos na esquina com os amigos. Entramos no msn, percorremos sites, deixando recados, opinamos nos blogs, cometemos e-mails. O computador fez com que qualquer pessoa mal alfabetizada se tornasse um emissor em potencial.
As facilidades dos redatores eletrônicos de textos também contribuem para isso. Escrever ficou fácil, as teclas do computador são macias, há mecanismos de correção (que não ajudam muito quem não conhece minimamente a língua), e sempre podemos contar com a maravilha tecnológica do dispositivo copiar e colar. Com apenas essas duas ferramentas, muitas teses são escritas, muitos artigos são produzidos, mas é preciso ver o lado bom, nunca antes tivemos tanta gente escrevendo besteira por conta própria.
A universidade também é responsável por nossa era de emissores. Somos o país que mais forma especialistas, mestres, doutores e pós-doutores do mundo. Formar gente é nossa obrigação. Não importa com qual grau de deficiência cultural, o importante é que todos têm abertas as portas da pós-graduação. Resultado: toneladas de textos inchando arquivos, bibliotecas e sites. E a sensação de que sabemos escrever e de que todos estão no mesmo nível.
Um dos maiores contistas do país caiu na besteira de aceitar convite de um remoto lugarejo do interior, onde abriria a feira de livros. Os milhões de escritores do Brasil defendem a leitura com palavras nobres, mesmo aqueles que nada lêem. Aumentamos as feiras de livros (espaço para discursos políticos, aliás muito bem escritos e depois publicados na imprensa local e transcritos nos relatórios de gestão) mais para aparecermos do que para fazer com que a boa literatura apareça.
Pois o contista aceitou a viagem à pequena cidade. Tinha solicitado à prefeitura um carro e quase teve um troço quando viu a ambulância na frente de sua casa. Fariam um aproveitamento. Tinham trazido um doente e levariam o escritor, que, para não parecer luxento, aceitou o transporte.
Chegou ao destino tarde da noite, descobrindo que não havia hotel e que ficaria na casa da secretária de cultura (sim, a cidade tinha uma secretaria de cultura), mas não eram horas de importunar a digna senhora. Restou-lhe dormir na maca, dentro da ambulância.
No dia seguinte, depois de percorrer todas as obras do município na companhia do prefeito, do matadouro novo ao galpão de reciclagem de lixo, o contista foi almoçar com as autoridades, numa churrascaria de beira de estrada. Ao ser apresentado à secretária de cultura como um dos grandes escritores do país, ela não se intimidou:
Então o senhor também escreve?
E ele percebeu que tinha ido à cidade para festejar as dezenas de escritores locais, entre eles a nobre organizadora da feira, que estava lançando um livro de sua própria lavra, impresso com verbas públicas, naturalmente.
Sim, vivemos numa sociedade de escritores praticantes, todos prontos para o glorioso esquecimento. Mas enquanto ele não vem, defendemos com ardor nossas preferências.
Há muitas coisas separando quem escreve. Nenhuma mais universal do que a preferência pela fonte na hora de formatar o texto. Em torno das famílias de fontes dividem-se os escritores do mundo todo. Generalizando, poderíamos dizer que há dois grandes grupos.
Os que preferem as fontes com ou sem serifa*.
Quem está acostumado a ler muito não abre mão de uma letra com serifa, que facilita a leitura, torna o texto mais elegante e lhe dá uma aura de sobriedade intelectual. Já os que não lêem, os que apenas folheiam jornais, processos, obras de referência, os que só consultam a internet, esses preferem as fontes sem serifa, que são mais modernas (dominam toda a internet e a publicidade) e trazem uma pretensão de vanguarda.
Há quem diga que a grande guerra contemporânea se dá entre as fontes Garamond e Arial.
O poeta aristocrata recebe um arquivo formatado com Arial e a primeira coisa que faz é mudar para Garamond, indignado com a falta de bom-gosto do outro. Se manda um arquivo para algum inimigo (inimigo da própria leitura e não dele, é claro), esse reclama que só conseguiu ler (se é que esses energúmenos lêem) depois de mudar a fonte para Arial. Se chega ao nobre poeta um livro com fonte diferente, ele se recusa a correr os olhos pelas páginas, para não perder tempo com livro tão vulgar.
Quanto mais provinciano é um autor diz o poeta aristocrático mais faz questão das fontes sem serifa. Todos os relatórios políticos, todos os textos de poetas medíocres, todas as cartas de amor cheias de erros ortográficos, todos os e-mails reivindicativos, enfim, tudo que não presta no mundo da escrita vem em Arial ou em outra fonte da mesma família.
Só o fato de alguém preferir a Garamond já cria no poeta aristocrático uma disposição não apenas para ler o texto, mas para gostar de seu conteúdo.
O que pode parecer uma simples questão de preferências é na verdade uma guerra entre escritores e não-escritores, entre leitores e não-leitores defende o poeta refinado.
* Serifa: pequeno traço usado para arrematar as hastes de certas letras.