A arte de ganhar dinheiro não guarda mistérios, há vários livros dando dicas. Prefiro devendar o dom inverso.

CARREGANDO :)

Todos os dias, eu me levanto bem cedo e me esforço para ser pobre. É tarefa árdua, mas me dedico a ela com afinco e obsessão. Ser pobre no Brasil é, como todos sabem, coisa improvável, vocação rara, apenas para uns poucos eleitos. Então, assim que levanto, agradeço por este privilégio de poder perder dinheiro.

Começo respondendo todos os e-mails que me mandam, até os daquelas pessoas que me desprezam, e também me dedicando a dezenas de originais eletrônicos – contos, crônicas, poemas, artigos, tentando achar alguma coisa bela para ser elogiada, porque todo mundo (até mesmo eu) quer umas palavras de carinho e admiração.

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Nisso perco algumas horas que poderiam ser usadas para fazer algo no setor produtivo ou mesmo no setor físico, como uma ida à academia de ginástica, algumas horas a mais de sono ou uma tentativa de abordagem sexual em plena madrugada.

Mas não, já estou me dedicando ao projeto de ser pobre.

É ainda pela manhã que pago minhas contas pela internet, não deixando nada atrasado, até antecipando, quando é possível. E todo mundo sabe que, no Brasil, quem paga suas contas em dia não fica rico nunca. O segredo é sempre protelar as dívidas e antecipar os rendimentos – para mim, verdadeiramente um segredo, pois não consigo entender como, depois, poderei sair na rua, cumprimentar as pessoas e perdir o cardápio no restaurante.

Mas estou empenhado justamente nisso, em não faturar alguns milhares de reais.

Pagas as faturas, listo mentalmente todas as pessoas que me devem, quantias pequenas e grandes, e tento justificar a situação delas, coitadas, não têm cabeça para valores irrelevantes e sofrem muito no árduo projeto de ficar cada vez mais ricas, o que é quase uma compulsão, que deve ser tratada em SPA cinco estrelas. As contas delas podem esperar, porque quem é pobre sabe ser virar, somos mesmo uma gentinha sortuda.

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Confesso que gostaria de ter mais alguns mil reais para uma viagem com a família, mandar consertar aquele eterno vazamento no banheiro, comprar umas roupas novas, pintar a casa e, luxo dos luxos, possuir certos livros raros. Mas não vou cobrar quem me deve, pois se eu fizer isso, e fizer com muita insistência, ameaçando, chamando esses nobres pelo que eles devem ser chamados, sou capaz de receber uma porcentagem deste dinheiro, e isso não vai resolver meus problemas, talvez até complique, pois o meu é um caso típico de empobrecimento lícito. Então, melhor deixar em paz aqueles que me contrataram e não me pagaram, pois estão ocupados, e o que é essa dívida para eles? Uma titica.

Para me sentir parte do mundo (vivemos um tempo em que o status vem do número de vezes que você usa seu cartão de crédito), vou a livrarias, adquiro uns tantos livros e passo boa parte do dia lendo. Poderia fazer algo que me desse dinheiro, mas tenho a idéia fixa. Leio até me cansar, quando meus olhos doem e me sinto perdido em minha casa, sem saber em que parte do mundo ela fica, pois acabei um romance ambientado numa aldeia polonesa e já leio uns poemas sobre a vida boêmia do Rio. Sem me localizar direito, sento à mesa do computador e começo a escrever um texto qualquer, escrever com este objetivo claro de perder, perder muito dinheiro. Sei, poderia compor discursos para políticos, biografias de milionários, campanhas publicitárias, mas que fique bem claro: quero mesmo é perder dinheiro, minha gente. Não vim ao mundo para ser tributável.

Faço as contas. Se eu tivesse executado aquele serviço para fulano, se tivesse concordado com certa proposta, escrito a obra fútil que o mercado espera, então eu poderia ter, digamos, 400 mil reais na conta. E iria gastar o dinheiro sem me preocupar com nada, teria dias de lazer, freqüentaria os lugares da boemia, poderia até tentar uma amante, no mínimo percorrer a lista de acompanhantes na internet. Então agradeço ao destino por não ter os 400 mil reais e volto a escrever, a corrigir provas de alunos, a ler lançamentos, e me contento com caminhadas diárias, uns tantos cafés por dia, contemplar o pôr-do-sol da cidade e outros pequenos nadas. E assim me dedico aos meus livros. Como vocês podem ver, ser pobre é um privilégio.

Quando sai mais um livro meu, os comentários não variam.

"Como você consegue escrever tanto?"

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"Onde arruma tempo?"

"É mesmo você quem escreve?"

Respondo que basta ter coragem de perder alguns mil reais por mês.

Então, pago as contas quando saio para almoçar com os amigos, nunca peço nada emprestado e faço questão de prestar os favores mais absurdos, como revisar livro, escrever o prefácio, dar minha opinião sobre isto e aquilo e colaborar em periódicos que não prevêem a insituição do cachê. Tudo uma questão de ficar rico ao contrário. É nisto que estou empenhado.

Está bem, confesso. Sou, sim, ajudado pelo país.

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De vez em quando arrombam minha casa. Levam o velho aparelho de CD. Entorto a roda do carro na estrada pedagiada. Clonam meu celular e tenho que pagar a conta. Sou multado porque estacionei a um metro de uma esquina morta quando deveria distar tantos centímetros a mais, sem que houvesse uma faixa indicando a altura adequada. O governo aumenta os impostos. Os pedintes não param de tocar a campainha de casa. Os guardadores de carro exigem a contribuição para a cachaça. O computador vive dando pau, justamente aquele que comprei com nota fiscal e tudo porque não gosto da ilegalidade.

Mas isso é irrelevante, meus caros. Consegui ser pobre por méritos pessoais.