Num aniversário da adolescência, minha mãe juntou uns dinheiros de costura e me deu de presente um violão, acho que a marca era Giannini. Estiquei as cordas, mas o violão nunca foi nem afinado. Andou comigo por vários lugares, mesmo depois que casei. Olhava o violão e me sentia com a responsabilidade de aprender esta arte. Enquanto não arranjava coragem para entrar em uma escola, deixava o violão na sala, ao lado de uma cadeira de diretor de cinema. Ele combinava com a decoração de meu apartamento de subúrbio. Pois eu não era poeta? E todo poeta não é um trovador? Que me aguardassem. Logo seria compositor. No mínimo, letrista.
Um dia, as cordas esticadas demais arrebentaram a madeira e o violão ficou imprestável até para decorar a sala, e logo se perdeu em uma de minhas muitas mudanças.
Achei justo este destino, eu definitivamente não tinha dom musical. É uma lenda na família que meu pai, falecido muito jovem, sabia apenas um refrão, que ele cantava quando estava alegre, geralmente depois de algumas doses de álcool: "A mulher que o trem matou, meu bem, morreu!"
Herdei a vocação musical dele, com uma diferença: só canto quando estou nervoso. O pessoal aqui em casa entende o sinal e sai de perto, o próximo estágio é a cascata de xingamentos, a erupção de vocábulos pesados. Então, posso dizer que a música e eu somos países sem relações diplomáticas.
Em 1980, no entanto, tivemos um breve namoro. Divulgava-se um festival qualquer de MPB na Rede Globo. Falei para minha irmã que ia inscrever uma música de minha autoria. Foi um alvoroço. Não tínhamos como fazer a gravação e o regulamento dizia que devíamos mandar uma fita com a música. No ímpeto de meus 14 anos, depois de ter escrito vários poemas sobre o dia das mães, o natal, o dia da pátria, e outros temas dignos da grande poesia, eu me julgava pronto para fazer-me compositor.
Em Peabiru, já tínhamos uma glória nacional, o cantor David Amaral que gravara um disco, cujo sucesso ainda sei de cor. O refrão é uma obra prima da poesia universal, quiçá da própria filosofia: "Quem nasceu pra ser tatu / morre cavucando, morre cavucando". Eu seguiria os passos do mestre, que compunha para gente do naipe de Amado Batista e depois não querem que eu me ufane de minha terra! Pois bem, estão aí minhas primeiras influências poéticas. Devo ainda acrescentar outro nome: Lindomar Castilho, que era ouvido com devoção por minha mãe.
Dentro deste cânone lírico, fiz a letra, que também guardei na memória e que gosto de cantar nos tais momentos de ira. Ela se chama "Nove de agosto", e vou dar uma canja para os queridos ouvintes: "Nove de agosto, dia de desgosto, minha namorada me deixa para casar-se com outro. A mesma cena se repete, nove de agosto de mil novecentos e setenta e sete, minha namorada me deixa para casar-se com outro. Eu fico num canto pensando: nove de agosto, dia de desgosto".
A letra era um primor, mas eu não tinha como gravar por falta de equipamentos adequados explicação para as gerações mais novas: não existiam ainda as leis de incentivo. Possuíamos uma vitrola vermelha, portátil, na qual eu ouvia John Travolta, iniciando-me no uso da brilhantina. Era toda a tecnologia em casa além da tevê preto-e-branco e do rádio. Minha irmã, sempre prestativa, resolveu o problema. Conseguiu emprestado um gravador desses caseiros, com microfone. E, depois de muito treinar, com esta voz maviosa que Deus me deu, e que já me rendeu o merecido apelido de araponga, gravei a antológica composição. Detalhe: sem nenhum acompanhamento. Ouvimos várias vezes a música e nos julgávamos prontos para conquistar o festival. Não sei bem por que desisti de concorrer, perdendo a grande chance de me tornar um astro pop.
Só depois veio o violão. E ele foi embora sem que eu tentasse de novo esta carreira, interrompida de maneira tão brusca, rompendo com uma linhagem musical paterna e com as inequívocas influências de David Amaral, que ainda vive em Peabiru, para a glória imorredoura da poesia.
Nestes anos de formação, fui abandonando o verso sonoro, esquivando-me para rimas toantes, polindo a prosa, meio ressabiado com qualquer tipo de sonoridade. Em vez da melodia, privilegiei a voz, uma voz que tem sido minha marca.
Mas nunca estamos livre de uma recaída.
No último domingo, depois de ler matérias jornalísticas sobre as meninas que namoram os chefões do tráfico detidos nos presídios de São Paulo, senti o borbulhar do gênio musical e escrevi uma letra, que é uma espécie de retrato do amor nos tempos do PCC. O título é "Pedra Sobre Pedra", nome de uma favela do ABC paulista:
"Meu nome é Silvana, um nome fictício. Meu homem vive em cana e eu vivo do vício. Sou uma das damas do perigoso traficante. Ele me dá muita grana, ando sempre elegante. Calça e tênis de marca pra dançar toda sexta nas boates mais caras, e ninguém se meta a besta. Meu homem é um terror, já matou não sei quantos em brigas pelo pó, mas pra mim é um santo. Manda dinheiro pro nenê, não deixa faltar nada, e a gente sempre se vê na sala da penitenciária. Ele sustenta outras meninas, mas eu não me importo. Aqui na favela sou rainha, mexeu comigo tá morto. Melhor viver com traficante do que sair com polícia, gosto da vida errante: festa, encrenca e bebida. Sou feliz nesta favela que é chamada por aí de Pedra Sobre Pedra, e pra mim é o paraíso. Ninguém sabe como me sustento. Não conto nada do ofício, vivo do dinheiro de um detento que trafica dentro do presídio. Sim, eu já tive muita fé, mas hoje só quero conforto. Minha mãe é evangélica, mas deseja um sofá novo".
Na febre da criação, passei esta letra a um amigo do ramo. Educadamente, ele disse que tem interesse em musicar. Prevendo a carreira de letrista, já começo a pensar em um curso rápido de violão.
Advertência: este texto pode conter produto transgênico.