Estava caminhando com minha mulher pelo Centro de Curitiba. Comecinho da manhã, as pessoas abriam as lojas, arrumavam as mercadorias, limpavam o chão. Um movimento típico de início de mais um dia de trabalho. Não tínhamos compromisso até a hora do almoço, então ficamos vagando sem rumo. Observamos os prédios, lembramos de outras épocas em que frequentávamos a região, tudo num passo muito lerdo. As pessoas se apressavam e nós nos movíamos com uma lentidão quase sacrílega.
Mas eu tinha uma coisa presa no peito.
Você sabe o que é um ficcionista?
Nestas horas, minha mulher se cala. Gosto de falar nas caminhadas, que não são na verdade caminhadas, e sim palestras. Eu falo e falo. Ela escuta. Expliquei:
O ficcionista é alguém que não se contenta em ser ele mesmo.
Isso é meio perigoso ela falou.
Por quê?
Talvez você esteja insatisfeito com a sua vida.
Nunca estive tão pacificado.
Mas gostaria que fosse diferente. Por exemplo, ter o seu tempo dedicado apenas à literatura.
Quem quer tempo só para a literatura é literato. Quero tempo é para viver.
Não compreendo essas sutilezas. Mas, me diga, por que você pensou nisso agora?
Nós estávamos passando pela Praça Osório, onde ambientei o meu primeiro romance (na verdade, uma novela). Era a história de um professor de cursinho que, ao sair da aula à noite, resolve viver no banheiro público. Ele se torna uma figura popular pela opção absurda de habitar um local tão insalubre, por onde desfilava um zoológico urbano. Nunca mais volta para casa.
Desconhecia este livro ela disse.
Sua voz ficou mais suave, mas sem perder a força. Era como se eu a tivesse excluído de uma grande festa. Não gosto de excluir as pessoas.
Era uma obra imatura. Nunca ninguém leu.
Me deixe ler.
Para o meu próprio bem, perdi o texto. Ficou só a memória superficial dele. A memória de um texto assim é maior do que o próprio texto. Esta superfície é o que havia de bom no grande monstro flácido.
Imagem forte ela falou, apontando para um prédio com suas janelas dando para a praça.
Todo romance é um monstro flácido. Cresce por todos os lados.
Ah, bom, pensei que você pudesse estar insinuando algo.
E riu.
Sempre estou insinuando algo.
Eis o ficcionista.
Não, não é isto que em mim é o ficcionista. Mas este desejo de alteridade.
É muito enigma para uma manhã tão ensolarada. Não sei a razão de termos começado esta conversa.
Faz muito tempo que não começamos conversa nova. Nossas conversas datam de 27 anos atrás. Até hoje, estamos apenas continuando.
Ser ficcionista é conversar sem parar ela arrematou, irônica.
Também é isso. As conversas nunca terminam. Bem depois, voltaremos a debater o mesmo assunto no ponto em que havíamos parado. São tantas coisas para comentar.
Ok. Voltando à conversa CONTINUADA hoje. O que é um ficcionista?
No meu romance de estreia...
Qual o título?
Me esqueci. Devia ser terrível. Lembro que o professor que vira zelador de banheiro foi o responsável pela instalação do primeiro elevador para cadeirantes.
Mais um idealista?
Para passar o resto da vida num banheiro público, tinha que ter muito ideal.
Você não idealiza muito. Acho que seus textos são muito cruéis com tudo, principalmente com você mesmo.
Olhe estas pessoas que abrem o comércio agora, que fazem pequenas tarefas, que pensam em comprar um tênis, no cardápio do restaurante popular onde vão todos os dias...
Você tem pena deles?
Ao contrário, invejo. Seria boa uma vida assim, na essencialidade dos seres práticos.
Você se realizaria como pequeno empregado no comércio?
Talvez sim.
Este é um sonho fácil.
O problema é que eu gostaria também de ser centenas de outras coisas.
Em todas haveria sofrimento.
Claro, sofrer faz parte.
Mas o que de fato você gostaria de ser?
O que sou, um ficcionista.
Ela solta uma risada.
Sei, porque assim você pode se esconder nos personagens.
Também por isso, mas principalmente porque sempre posso interromper estas vidas imaginárias.
Naquele momento passou um carro de som, suspendendo por alguns anos esta conversa.
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