As memórias de escritores são antes construções literárias, e dessa forma se distanciam das recordações daqueles que pertencem apenas à esfera das personalidades. O interesse destas está nos fatos narrados, nas revelações da vida privada, nos casos estrondosos, e por isso se aproximam mais do jornalismo sensacionalista do que da cultura. Já as memórias de escritores se enraízam no território da língua e de suas potencialidades. Nelas, o anedótico é periférico, valendo o texto pela compreensão da condição humana.

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É assim que Nélida Piñon entende a sua vida, agora cifrada num conjunto de elipses narrativas que compõem o volume Coração andarilho (Record, 2009). Diz ela na abertura deste delicioso livro: "misturo a colheita da memória com a invenção." Mas é preciso definir que invenção é esta. Não se trata propriamente da ficcionalização do passado, o que faria do livro um romance autobiográfico, tal como entrou em moda nas últimas décadas. Apesar da contaminação ficcional, Coração andarilho é obra de memórias. A invenção de que fala a autora reside no uso que ela faz dos recursos estilísticos. Tratando do passado, que por natureza é impreciso (retorna sempre com acréscimos narrativos, pois vamos reelaborando interiormente o vivido), a autora não se entrega ao realismo dos depoimentos. Ela escreve o livro a partir de metáforas, de cortes e fragmentações, colocando véus de linguagem em torno de sua vida. Não temos, por isso, um desnudar-se em público, mas uma valorização das construções de sentido e de linguagem em detrimento do meramente confessional. Assim, suas memórias mantêm secretas inúmeras áreas biográficas, não fazendo alarde das convivências com pessoas de seu afeto ou de grandes figuras com quem partilhou a trajetória. A invenção está mais na linguagem, no estilo que mistura temas clássicos e modernos, simbologias e experiências, configurando de forma pessoal o idioma, um idioma que é de todos mas que na literatura se manifesta sempre de forma individualizada.

Daí que o valor do livro não venha das revelações, mas da demarcação das coordenadas de uma existência, de um estilo literário, de uma maneira de se colocar perante o outro, tendo como epicentro a família. Nélida reconstrói este núcleo com um coração bondoso, pronunciando cada nome com uma carga de carinho muito grande. A família (biológica ou eleita) é seu ambiente natural, é o espaço no qual ela se reconhece. Filha única de um pai que queria um varão que projetasse o nome coletivo, pois sabia que às mulheres era quase impossível impor-se socialmente naquele contexto, Nélida assume desde criança a obrigação moral de dar transcendência ao sobrenome oriundo de uma aldeia da Galícia. Desde os 10 anos, vê-se como escritora, até afirmar-se no cenário nacional e internacional como uma das mais representativas vozes da América ibérica. E é com uma obstinação colona que tudo faz para seguir neste caminho herdado tão cedo: "todos os dias alguém me bate à porta, convocando-me para desistir, e tenho que dizer não mil vezes" (p. 129). Na sua literatura está presente um denso desejo de elevar-se do anonimato de imigrante, que ela não nega, antes nomeia ("Eles eram minha história", p. 85), e das limitações impostas ao feminino. É como descendente de galegos que vieram fazer a América e como mulher que sua voz se faz ouvir, conquistando originalidade de idioma e de ponto de vista.

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Nesta reconstrução do meio familiar, em que são constantes os tratos com alimentos, pelo que significam enquanto cimento das afetividades grupais, ela reconta uma longa estação nas aldeias da Galícia, quando recupera a sua genealogia galego-espanhola, que vai ser reforçada em seus anos de Barcelona e nas viagens constantes à aldeia de Santa Fé, na Catalunha, na condição de hóspede dileta de sua agente literária, Carmen Balcells. A escritora reverencia as origens, reforça os laços com espaços e pessoas, mas acrescenta a eles novas latitudes, ampliando-os, dando-lhes um valor universal. Memória e invenção.

Galícia, Catalunha, Nova Iorque, por onde passa a escritora ela sempre se apresenta como habitante de uma língua portuguesa, que é brasileira e atemporal, e que não se rende ao coloquialismo simplista, mantendo conexão com os clássicos, principalmente com os gregos, aprofundando-se tanto no solo das experiências quanto no terreno movediço das palavras, que não são nunca inaugurais, e sim produtos de longínquos rituais. O estilo literário de Nélida Piñon, dentro da pluralidade de nossa cultura, é uma argamassa de temporalidades e experiências.

Se o pai queria um varão para continuar o nome da família, tendo nascido uma única filha, que não terá descendentes, esta assume um papel disseminador, embora não na linha biológica. Ela se mantém fiel às origens, idealizando pais e parentes ("Falo demais da família. Excedo-me em seus méritos. Talvez exagere para me convencer de que eram como eu os desenho", p. 164), trazendo à luz os ancestrais, incluindo-os na posteridade da literatura. Ela assim constrói outras possibilidades de ser, reinventando os pais, parentes e amigos como filhos seus, filhos de sua linguagem, cumprindo o papel de continuar a árvore genealógica.

Este livro de memórias, distanciando-se dos congêneres, é um tributo à imaginação. Criamos nossas descendências não apenas em carne, mas principalmente em palavras, em símbolos, em lendas. Por mais que ande pelo mundo este coração poroso, ele sempre volta sobre os próprios rastos, acrescentando-lhes contornos simbólicos.