Toda vez que vou ao Rio, amigos me pedem cuidado com as balas perdidas, que não tome ônibus, podem ser incendiados, que eu não ande à noite e mais isso e aquilo. O Rio virou uma caricatura de si mesmo, e faz de tudo para corresponder a esta imagem. Sim, é violento. Mas não é muito mais violento do que a periferia de qualquer cidade média brasileira só não vemos isso por não freqüentar esses espaços marginais em nossa cidade. E como no Rio tudo é misturado, a violência acaba mais presente.
Na última estada lá, fiquei no Hotel Glória, que se encontra um tanto decadente, mas com um pátio e uma paisagem belíssimos. Tinha descido no Galeão, para evitar a conexão em São Paulo, e na saída do aeroporto fui abordado por taxistas. Com a diminuição de estrangeiros por aquelas bandas, que agora preferem o Nordeste, os taxistas caçam os passageiros em todos os lugares. Resolvi não ir de táxi para o hotel, e esperei 20 minutos na fila do ônibus. Ônibus com ar-condicionado, que o carioca chama de frescão.
Ele me deixou na frente do hotel e senti orgulho por me virar sozinho na cidade.
Tinha levado o guia de sebos e reservei um dia só para fazer a peregrinação pelas livrarias de usados. Escolhi começar pela Av. Rio Branco e fui me informar na portaria, às 8 da manhã, sobre o melhor caminho para ir a pé a um sebo chamado Berinjela.
O atendente me desaconselhou.
Melhor tomar um táxi e olhou para a entrada do hotel, para um pátio coalhado de carros.
Prefiro ir a pé já estava com meus tênis de caminhada e uma camiseta clara.
É uma região muito perigosa. E nesta hora tem pouca gente por onde o senhor vai passar.
Tudo bem, mas vou assim mesmo.
Ele me explicou o trajeto de qualquer jeito, achando-me mais um turista mesquinho. Sim, decaiu mesmo a qualidade dos freqüentadores do Glória.
Saí pela rua já quente, passando por praças com alguns pivetes e umas poucas pessoas a caminho do trabalho, mas logo estava no centro antigo, deslumbrado com os casarios, com as ruas estreitas e frescas, com os becos, alguns prédios restaurados. Andar uma cidade é uma das coisas mais fascinantes para um observador. Conhece-se o corpo de uma mulher tocando-o, conferindo curvas e saliências, perscrutando-o com os olhos próximos e atentos. Com uma cidade não é diferente. É preciso tal proximidade, que só conseguimos ao andar a pé, sentindo seus odores mais fortes.
Não me amedrontei em nenhum momento, mesmo caminhando mais lentamente, e sempre me encantando com pequenas descobertas. Logo estava na Cinelândia, numa feira de livros usados. Fala-se tanto em bienais e grandes eventos culturais, mas eu nada sabia da existência dessa feira popular onde se vendiam livros a um real. As bancas estavam sendo abertas, e ataquei caixas ainda não esvaziadas. Para cada 4 ou 5 bancas, eu encontrava um livro.
Numa delas, a dona reclamava com uma amiga. Tinha perdido clientes no domingo porque os mendigos começaram a abordar e constranger os compradores.
Um pai até falou para a família, vamos embora se não vou ter que quebrar a cara de um pivete hoje, e deixou os livros ela disse.
São mais de 20 mendigos morando aqui na Cinelândia a outra informou. A polícia tem que dar um jeito nisso.
Que tal convocar as forças armadas? quase falei.
Mas me contive, estava no meu ambiente predileto, no meio de livros. Como a feira é apenas um imenso toldo, como um corredor sem paredes laterais, eu erguia os olhos das bancas e via o Teatro Municipal e outros prédios históricos, tudo um tanto deteriorado. A cidade velha e os livros usados havia uma combinação.
Eu queria comprar os cinco volumes em que Luiz Edmundo contou a sua história e a do Rio De um Livro de Memórias. Já havia localizado pela internet, em casa, dois sebos que possuíam esta obra definitiva sobre a outrora capital federal. E a encontro com encadernação em capa dura pelo valor módico de 150 reais. Pedi para ver os livros, e, descaradamente, exigi desconto. Falei que no sebo tal havia exemplares autografados para Otto Maria Carpeaux, e que aquele preço não condizia com o mercado. Depois de alguma negociação comprador de livro usado que não pechinche não entende nada do ramo , ele me fez por R$ 100 e em dois cheques.
Disse que voltaria depois. Terminei de fazer a feira no sentido verdureiro do termo, trocando frutas, verduras e legumes pelas folhas amareladas dos livros e fui ao Berinjela.
Não é um grande sebo, mas o clima é ótimo. Não falo do ar-condicionado, que aprecio e muito, mas do clima brincalhão e jovial dos funcionários. Um já me abordou perguntando se eu conhecia o esquema da casa.
O sistema eu corrigi.
É, o esquema da casa insistiu.
Puxou um livro da estante e me mostrou o preço anotado a lápis R$ 25.
Mas o valor real é a metade, ok?
Então por que não colocavam o valor final? Porque quem gosta dessas velharias quer sempre desconto. Quer a certeza de estar fazendo um bom negócio. O funcionário deve ter se simpatizado comigo e me revelou já o esquema. Ou ele faz isso com todos e dividir por dois o preço é apenas uma forma de marketing, ou de evitar que regateemos.
Escolhi vários livros, paguei no cartão sem reclamar tinha tido 50% de desconto. A manhã estava salva.
Voltando para a Cinelância, vi um menino negro deitado na praça. Ele cobria o chão com um plástico sujo, estava apenas de calção, e dormia no sol das onze horas. Mulheres e homens encostados em monumentos já bebiam cachaça. Um mendigo homossexual, a metade das nádegas de fora, mexia no lixo. Olhei para o menino e vi que ele chupava o dedo. Devia ter uns 8 anos. Em pleno burburinho urbano, tendo apenas um plástico como proteção, ele criava um lar, e chupava o dedão na ausência materna.
Desse ângulo, enxerguei o Amarelinho um bar da década de 20. Hoje um pé-sujo, como me informaram. Sentei numa das mesas externas, próximo dos mendigos e da feira do livro, pedi um chope, li trechos das obras compradas, comi carne com molho, arroz e fritas, depois voltei para a feira e comprei os cinco volumes de Luiz Edmundo sobre um outro Rio, um Rio que se sonhou civilizado.
Havia muita diferença entre estes dois Rios? Em essência é a mesma cidade só que antes livros e mendigos nunca ocupavam o mesmo espaço.