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Vivo tão fora do calendário que não sei os dias da semana ou do mês, esqueço o próprio mês. E, não raro, o ano. Tenho que me concentrar para poder saber quando é hoje. Isso ocorre um pouco por minha natureza distraída, mas principalmente pelo fato de fazer mudanças constantes de tempo e espaço por meio da leitura.

Que tempo eu sou quando leio um livro? Que espaço sou eu?

Não pertenço a um tempo autobiográfico, mas ao dos livros. Minhas memórias reais seriam os resumos de todos os livros lidos. Deixei de existir quando comecei a ler sistematicamente. O homem que fui morreu portanto na juventude, talvez por isso eu tenha esta obsessão pela infância e adjacências. Hoje, eu sou a biblioteca – uma coleção de obras anotadas é minha mais perversa tradução.

Tomei dois banhos e não saí de casa o dia todo, nem fui à parte da frente do quintal. É quase uma crise de pânico – só que não se trata de medo das pessoas, apenas me canso delas. Escrevi uns 30 e-mails – o tempo despendido daria para produzir um dos contos que tenho adiado justamente por falta de tempo. Cada dia de crítica ou de correspondência eletrônica significa um conto a menos. Agora, vou dormir, esperando uma noite de descanso – que não virá. Mas antes tomarei mais um banho – como se eu quisesse me livrar de algo grudado em mim.

Manhã de caminhada, passagem pelo mundo em oferta do supermercado, mais correspondência eletrônica. Agora vou a uma chácara com amigos não muito íntimos, para voltar encharcado de mediocridade – a isso chamam viver.

Terminei de ler Negociando com os mortos, de Margaret Atwood, um bom livro mas com muita volta e muita sugestão, e isso atrapalha.

Escrever um ensaio intitulado "Cartografia da insônia", para falar que todo escritor habita a noite e grava em pedra um tempo água.

Dez dias sem aparecer aqui. Muito trabalho – pareceres para editoras, palestra, resenhas irrelevantes, compromissos acadêmicos de leitura. No meio disso tudo, escrevi um conto-homenagem para Dalton Trevisan. O maior contista da língua lançou Rita Ritinha Ritona – uma obra-prima em que ele suspende o minimalismo para encantar o leitor com uma literatura mais demorada.

O conto pequeno não me interessa. Quero a história que dure mais do que o bocejo do leitor. Estou, justamente por isso, lendo Henry James e Isaac Bashevis Singer.

Começo a organizar um novo volume de contos, totalmente tomado pelo trabalho de poda: cortar os ramos ladrões do texto.

Sou um autor com livros de meia edição – 1.500 exemplares em média. Apenas um dos livros já teve reedição. Como não vendo, tenho que escrever mais, fazer a roleta girar. Se começar a vender, poderei produzir menos – é uma lógica estranha essa.

Eu me deprimo muito fácil, embora também me entusiasme com igual facilidade. Depois de ter me dedicado explosivamente à escrita de um conto, suspendendo tudo, até os compromissos mais importantes, resta um texto cheio de problemas. E será preciso reescrever tantas vezes, sem a segurança de que estou no caminho certo. Outra coisa que me deprime é a natureza biográfica de meus escritos – escrever é sempre lidar com pessoas e coisas que me são queridas. Sinto-me mal por usar essa matéria em ficções impiedosas. Parece que estou maltratando as pessoas de meu convívio. Escrever é, assim, brigar com os que me cercam ou me cercaram.

Tantas leituras nesses dias. Ler é fracionar o tempo, vivendo de forma mais lenta e mais plena. Apenas viver os compromissos cotidianos é acelerar o tempo, contentando-se com a superfície do mundo.

Estou corrigindo provas, completamente indiferente à música do dia operário – sons de carros, latidos dos muitos cachorros do bairro, vozes de vizinhos etc. Na biblioteca, o tempo não tem fim.

Enquanto corrijo provas com textos escolares, os grandes livros me aguardam, pacientes, nas prateleiras.

As aulas de ontem foram boas. Sofro para lecionar, pois me recuso a chegar despreparado. O dramático é que, mesmo me preparando, a tensão não diminui.

Acabo de ler Os dias e os livros, de Alberto Manguel. Apenas suspiros apaixonados, uma sucessão de comentários e citações com alguma beleza e quase nenhuma iluminação. É uma obra que descende de Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, com outro objeto cultuado – o livro. Obra adejtiva. Também li Lições dos mestres, de George Steiner, bem pensado mas igualmente secundário. O defeito desses livros é o borboletear pela biblioteca. Manguel, como leitor eclético, é um amante inconstante – larga os livros em nome de outros. A biblioteca é para ele antes um catálogo. O seu ensaio vale como diário – pois as anotações sobre o cotidiano da casa numa aldeia francesa são belíssimas. Os livros entram como móveis nessa casa, são quase objetos de decoração. Nada neles é mais importante do que a posse apaixonada e a guarda respeitosa. Não contam as obras comentadas, mas quem as lê. A literatura é posta de lado, dando lugar à leitura pela leitura.

Na agenda de mesa, vou riscando os dias vividos – tão vazio de evento esse tempo de leitura.

(Três quartos da caderneta em que tentei manter este diário ficaram em branco.)

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