Existem os descobridores de talento, de modelos, de oportunidades de mercado etc. O descobridor é uma pessoa que desenvolve um olhar especial para ver aquilo que a maioria nem sequer imagina. São, portanto, figuras necessárias para criar tendências e histórias de sucesso, fazendo a máquina do mundo capitalista funcionar.
Da minha parte, sou uma negação também nesta tarefa. Não consigo descobrir objetos cotidianos nos seus lugares mais prováveis. Por exemplo, tenho que pegar a tesoura para um trabalho rápido. Sei que ela fica em determinado armário, com apenas três gavetas. Reviro o conteúdo destas sem o menor sucesso. Daí já brigo com a família que sempre tira as coisas do lugar.
É impossível viver sem um mínimo de previsibilidade.
Alguém se aproxima e, de longe, acha a tesoura que estava invisível para mim.
Só pode ser magia negra. Algum diabinho que tira as coisas e depois as devolve para zombar da gente.
É claro que nem eu acredito nesta desculpa. Mas é preciso ter alguma coisa para dizer nestes momentos em que somos desmascarados.
Nesta área das habilidades humanas, tenho apenas algum sucesso com a descoberta de bares. Sei que esta é uma ciência supérflua, e que não me dará nem notoriedade nem dinheiro, ao contrário, consumirá mais os meus rendimentos, mas há décadas tento descobrir lugares adequados para beber.
Num conto famoso de Ernest Hemingway (1899-1961), "Um lugar limpo e bem iluminado", o narrador recusa os bares e bodegas, preferindo passar as suas horas de folga em cafés muito bem organizados. Teme voltar para casa e para a sua solidão.
Esta não era a preferência do próprio autor, frequentador contumaz de todos os botecos.
Em Madri, fiz o périplo pelos balcões preferidos do velho Ernest. Passei duas noites bebendo dry martini no Museo del Chicote, na Gran Via. Depois desta aventura (voltar caminhando e sozinho às 4 da manhã para o hotel), um amigo me disse que aquilo não passava de coisa para turista ver, raro mesmo era o bar de um hotel, não guardei o nome, onde estava escrito:
Neste bar Hemingway NUNCA bebeu.
Sem me corrigir neste turismo etílico, estando em Havana, passei pelos locais do escritor, a sua casa em Finca Vigia, o hotel onde morou por um tempo (Hotel Ambos Mundos) e por seus bares. Foi um começo de noite agradável que gastei no restaurante-bar Floridita, na Obispo 557, esquina com a Monserrate, um dos 7 mais famosos do mundo, onde bebi daiquiri, o drinque que o Ernest tomava. Há uma estátua dele ali. De recordação, trouxe uma bolacha para copos.
Mas os bares famosos não podem ser descobertos. Ou melhor, eles só são famosos porque alguém já os descobriu há muito tempo.
E bar não é um lugar para ir numa visita rápida, é antes de tudo uma extensão da casa e do trabalho. Um lugar que freqüentamos com alguma assiduidade.
Estou sempre à procura desse tipo de boteco. Para eu me sentir bem, é preciso que ele preencha alguns requisitos. Ter um lugar em que eu possa sentir como meu. Uma mesa. Um canto de balcão. Uma marquise ou varanda.
Não ser muito cheio, mas ter uma clientela mais ou menos fixa. Cada bar é lugar de uma turma, que se encontra para falar de seus assuntos prediletos. Mesmo não fazendo parte desses grupos, é bom saber que eles estão por perto.
Quem gosta de bar não gosta de bêbado, e sim de beber. Beber em paz. Boteco onde os alcoólatras em fim de carreira estacionam são extremamente inadequados. Eu evito.
Um bom bar deve ter também caráter. Não pode ofertar todas as novidades da indústria de bebidas e alimentos. E deve manter alguns ingredientes tradicionais e meio escandalosos como torresmo frito na hora. Um bom boteco é sempre um tanto antiquado.
Os melhores bares ficam ou no centro (a cidade pode ser grande ou pequena) ou bem na periferia. Os desta localidade geralmente são um misto de bar e mercearia, e você encontra alguma comida especial feita para os freqüentadores.
Ao contrário do que pensava o narrador do conto de Ernest, bar tem que ser um pouco escuro, criando certa proteção para quem bebe de dia. Pois só ama de fato os bares quem sente vontade de passar a tarde toda neles, vendo o movimento da cidade em suas urgências na maioria das vezes desnecessárias.
Quando acho um lugar assim, começo a bater ponto uma ou duas vezes por semana. Não que eu só beba uma ou duas vezes por semana, mas é que preciso dispor de mais de um endereço onde eu seja acolhido. Sinto-me seguro com esta possibilidade. Em um, tomo chope. Em outro, a cerveja tal. Naquele, bebo uma dose de pinga, um martelinho, como dizem os entendidos.
Nas viagens a outras cidades, sempre ando pelo Centro para identificar um ou dois bares em que eu possa rapidamente criar alguma camaradagem no curto espaço de exílio.
Onde houver um bar assim, ninguém estará completamente sozinho.
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