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"Olá! Como vai? Desculpe eu ter me ausentado por tanto tempo. Sabe, tive que revolver alguns problemas. Mas não me esqueci de nossa última conversa. Você se lembra, não é? Pois então, estou enviando aquela foto, mas por favor guarde em local seguro. É uma foto só nossa, muito comprometedora e não pode de jeito nenhum cair em mãos erradas. Tchau! Segue abaixo a foto."

O e-mail chega sem nome e tem um endereço suspeito: ppaixao_eterna@yahoo.com. Ele já não acredita em paixão, apenas na rotina de relações duráveis. Há anos mora com a mesma mulher e quanto mais o tempo passa e os hábitos se solidificam mais ele se sente afetivamente realizado. E paixão eterna é oxímoro. Toda paixão é passageira. Por isso, lê a mensagem com desconfiança.

Também não saiu com ninguém nos últimos anos. Não conheceu na intimidade mulheres diferentes. E nunca soube de foto alguma. O e-mail é um spam, disseminado aos quatro cantos. Ele recebe recados similares várias vezes por dia. E deleta todos.

Está aí um verbo que entrou na língua portuguesa com o advento do computador. Deletar. Imposto pela tecla Delete ou Del, um dos procedimentos mais comuns para quem trabalha com computador. Quantas vezes por dia ele aperta esta tecla? Dezenas de vezes. É o movimento mais repetido no mundo. Neste exato momento, milhares de pessoas estão usando Del para apagar algo digitado incorretamente ou que invadiu o computador. Eis nossa palavra número um. E é exatamente esta teclinha que ele deve agora apertar. Descartar a falsa paixão eterna, depois limpar a lixeira e ficar livre de todas as contaminações.

Ele então se lembra de um caso acontecido muitos anos atrás. Andava pela cidade, vinha da casa de uns amigos, estava solitário e viu uma mulher quase nua num dos cantos da cidade. Ele viu a cilada. Se se aproximasse dela poderia se deixar fascinar por aquela lagartixa, que se mexia como em pista de dança, embora não houvesse música nenhuma. Mesmo assim, aproximou-se. Ela falou algo obsceno, chamando-o para mais perto. Ele obedeceu. Estava enfeitiçado. Faria tudo que aquela mulher mandasse. A poucos centímetros, olhou nos olhos dela. Se tocasse em seu corpo se apaixonaria perdidamente, não para sempre, mas por uma noite. Dormiriam em um hotel, mas teria que encará-la na manhã seguinte. Ele odiava as noites e amava a manhã. Pensou nisso, que nenhuma noite, por melhor que seja, vale mais do que a pior manhã. A prostituta fez a proposta e ele disse, em voz alta: "Café com leite, pão fresco e ovos mexidos com creme de leite".

Sua boca salivou. E pôde seguir para casa e dormir em paz, esperando pelo café, que ele preparou, na manhã seguinte, como se fosse um ritual.

Foi assim que deletou a tentação. E agora deve fazer o mesmo com o e-mail da suposta conhecida, que lhe oferece uma foto; uma foto obscena, é claro. Há o ícone para que ele clique. Um pequeno movimento no mouse e tudo estará desvelado.

Recebe então um e-mail do Ministério Público, nos mesmos moldes genéricos, convocando para um depoimento. O setor que enviara o comunicado era suspeitíssimo: uma tal de Coordenação de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos – CODIN: "O Ministério Público da Justiça, no desempenho de suas atribuições institucionais, com fundamento nos artigos 137 e 119, inciso VI da Constituição Federal e artigo 6º, inciso VII, da Lei Complementar n.º 175, de 20 de maio de 1993, INTIMA Vossa Senhoria a comparecer na Procuradoria Regional do Trabalho, no dia 29 de Novembro de 2008, às 10:30 horas, a fim de participar de audiência administrativa, relativa ao procedimento investigatório em epígrafe, em tramitação nesta Regional, conforme despacho em anexo."

E lá está o campo para se obterem as informações necessárias. Ele não se deixa seduzir por estas palavras preocupantes, embora se sinta com interesses muito difusos nesta noite. Mais do que isso, com desejos difusos. Deleta rapidamente a mensagem do Ministério Público e volta a se dedicar à paixão eterna.

Não teme as piores ameaças da justiça, não tem curiosidade para saber do que o acusam. Tantos já o acusaram das coisas mais improváveis que ele nem se importa mais. Mas sente ainda a atração pelo e-mail da mulher incógnita. Ela lhe promete algo. Ela o chama desde a escuridão de uma noite que não se apaga. E está prestes a pronunciar palavras quentes. E ele quer tais palavras esta noite.

Posiciona o cursor sobre o ícone. E se de fato for uma mulher mandando uma foto? É muito remota esta possibilidade, mas para um homem solitário não há o improvável. O homem solitário, numa noite quente, quando todos dormem, espera sempre um sinal. Ligou o computador para ver se alguma paixão do passado o procurava. É com este intuito que ele está ali verificando as mensagens de sua caixa de correio eletrônico.

Chega à sua memória o corpo insinuante da prostituta, outrora apenas entrevisto. Ele tenta então a abordagem que não teve coragem de fazer naquela noite remota. Toca com força o ícone, quer despir totalmente a mulher. Quer levá-la ao quarto sujo do hotel. Mas o que se abre para ele é uma cascata de páginas contaminadas. Depois de uns minutos, ele desiste. A tecla Del só pode ser usada antes. Desliga o computador puxando a tomada. E vai para a cama. Na manhã seguinte, chamará o técnico para passar o antivírus. Mas antes vai preparar um café da manhã de hotel para a esposa.

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