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Miguel Sanches Neto

Lição de etimologia

De longe, antes de cruzar a rua, vejo a excitação do Professor. Seus olhos estão estalados, ele fala sozinho, mexendo as mãos, e caminha com passos decididos. Sofre mais uma de suas idéias geniais e procura a vítima sobre quem derramá-la. No geral, aprecio seus absurdos, suas opiniões estrambóticas, mas ando um tanto cansado dessa volubilidade. Cada dia ele está envolvido em algo diferente, nunca se fixa em nada, e isso tem seu lado desagradável.

Tento ir para a outra calçada, mas um carro passa bem na hora, e sou obrigado a esperar. Não olho para a lateral, de onde vem o Professor, ruminando planos. Súbito sinto uma mão potente apertando os músculos de meu braço e me levando de volta à calçada.

– Está querendo fugir de mim?

– Ah, é o senhor! – digo, virando-me na direção dele.

– Não, é o Bicho Papão. Pensei que tivesse com torcicolo.

– É só pressa, Professor – digo, tentando uma fuga.

– Era pressa. Vamos comigo a uma banca de jornal – e sua manopla me arrasta para a esquina.

Noto que ele tem jornais e revistas na outra mão, uma maçaroca de papéis.

– Vai devolver as publicações já lida? – provoco, pois é notória sua fama de mesquinho.

– Vou é comprar mais.

Tenho então que fazer a pergunta, dar o gancho para que ele explique no que anda metido. Já que não consigo escapar, rendo-me.

– Pra que tanto jornal? – falo isso rindo, preparado para a reação.

– Uma pesquisa sobre o uso da palavra.

– Das palavras, o senhor quer dizer.

– Não, não. No singular. Verificar como está sendo usada a palavra.

– Qual palavra? – e agora já estou realmente intrigado.

Entramos na banca, ele folheia jornais e escolhe mais alguns. Enfia a mão no bolso e tira um lenço de pano, branco e bem dobrado. Abre-o, revelando um maço de notas, a primeira é de um real. Ele retira do meio uma cédula nova de 50, bem dobradinha, como se fosse papel para enrolar cigarro. Quando o empregado da banca lhe devolve o troco, ele inspeciona uma nota de 10 reais, mole e suja, e pede para trocá-la por outra mais nova.

Só depois dessas operações jamais vistas, o Professor gastando como deputado em campanha, é que responde minha pergunta.

– O jornalismo vive da palavra.

– Sim, é também uma arte da palavra.

– Não no sentido genérico e nobre. Vive da palavra do momento. Toda a ciência jornalística é repetir essa palavrinha, que muda a todo instante. Até dias atrás, ninguém sabia o que era o famoso ‘transponder’. Depois da colisão do avião da Gol com o Legacy, ficamos especialistas nesse tipo de radar. Era a palavra. A senha.

– E qual a palavra de agora?

– Bulimia. Não reparou? Todos os dias saem dezenas de matérias sobre bulimia, só porque morreram algumas magrelas.

– Magrelas mas bonitas – corrijo.

– Uh! – ele diz, com cara de nojo – Que tempo o nosso! Um tempo em que as jovens vivem entre diarréias e vômitos – as pessoas na rua nos olham, pois o professor fala com ênfase.

– E o senhor está em mais uma de suas cruzadas? – tento disfarçar.

– Sim, tive uma grande idéia. Fazer um dicionário com os verbetes do ano. Palavra do mês de novembro de 2006: bulimia.

– É uma palavra meio surrealista. Me lembra alquimia por um lado e bule por outro.

– Fui às fontes, fui às fontes. Significa apetite insaciável e surgiu em 1881. Tem 125 anos e só agora entrou na moda.

– É latina?

– Não, meu caro, é bovina.

– Nessa não caio mesmo. Ora, bovina!

– Veio do francês – boulimie –, derivação do grego – boulimia –, etimologicamente quer dizer fome de boi, fome devoradora.

– Mas mudou o sentido?

– Tudo muda. Agora é um distúrbio que faz as meninas comerem e logo descomerem pelas duas portas. Pecado e arrependimento em tempo real. E vai mudar mais, muito mais. Logo uma mãe, ao ver o filho atacando a geladeira onde tinha um bolo, querendo falar difícil, vai gritar pro carinha: pare já com essa bulimia!

– Bom, muito bom. A criatividade do povo brasileiro.

– Ou a menina que recebe atenção especial do namorado, cheio de mãos, num momento de lucidez, implorando: aonde você quer chegar com essa bulimia toda?

– Concluindo: nos trópicos não há etimologia, há improvisações. Mas vamos deixar o dicionário de lado e pensar um pouco o fenômeno. Por que essa mania de mulheres esbeltas?

– Magrelas, meu caro. Magrelas... Tenho uma teoria – o Professor diz, parando na calçada. Eu me preparo.

– Que venga el toro!

– É um capricho de estilistas narcisistas, que querem que as coitadas sejam imagem e semelhança deles. Ou dos amantes deles. Masculinizaram o segundo sexo. Vingança. Inveja. Um pouco também por culpa do feminismo, que verticalizou a mulher.

– Como assim?

– Mulher na vertical. Mulher que homem não usa. São bonitas de ver. Nas passarelas. Nas revistas. Nas novelas. Mas não têm serventia noturna. Nesse quesito, as gordinhas são imbatíveis. Quando se deitam, meu Deus, tudo fica tão no lugar, essas sim são mulheres na horizontal.

Sentindo a boca seca, proponho.

– Um café?

– Não, Menino, hoje estou muito anoréxico – ele diz, ajeitando os jornais e as revistas sob o braço e cruzando a rua com uma pressa teatral.

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