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Acompanho o escritor Eustáquio Gomes desde meados dos anos 80, mas só recentemente comecei a me corresponder com ele. Assessor de imprensa da Unicamp, viveu sempre de seu trabalho burocrático, sonhando com a aposentadoria. Um ano antes de fechar o tempo, tirou as licenças a que tinha direito e se dedicou ao projeto de uma vida. São deste período os fragmentos de sua correspondência que reproduzo aqui.

12 de outubro de 2009:

"Meus planos são simples: 1) terminar o romance A guerrilha dos poetas em 2009 (está bem encaminhado). 2) Em 2010, terminar a novela curta interrompida (A lemniscata) no primeiro semestre e, no segundo, escrever um outro romance já armado, Delenda Caicó. Para além disso, horizonte em aberto. No fundo, feliz de sentir que estou aprendendo. As dificuldades com A guerrilha, sobretudo quando já o supunha pronto, me ensinaram bastante sobre estrutura do enredo e equilíbrio da forma. Agora que tenho tempo vou descobrindo minhas insuficiências. Já não vale o álibi de que o emprego etc. E a luta fica mais ferrenha."

8 de novembro de 2009:

"Eu tenho a sensação de roubar tempo à escrita quando me sento para parir (literalmente) a crônica semanal. E sempre deixo para a última hora. Tento reavivar meu interesse escrevendo séries temáticas ou afins, de modo que possam vir a compor livrinhos mais ou menos coesos. O José Carlos de Oliveira apegou-se a esse recurso e acabou escrevendo dois romances no seu espaço no Jornal do Brasil. Mas isso só foi possível porque ele era cronista de quatro dias por semana, uma loucura. Mas também só fazia isso na vida. Assim nasceu aquele livro de título belíssimo, Um novo animal na floresta que, contudo, não é um bom romance (a crônica o traiu) e também um outro editado pela Ática, Domingo 22, a que ninguém deu bola. Depois ele morreu."

29 de março de 2010:

"Com a aproximação da aposentadoria (em junho, por ora ainda estou de licença-prêmio), o reitor está me fazendo um cerco feio para que eu me aposente e seja recontratado. Dois dias por semana, ele diz e me oferece mais da metade de meu salário atual. Não vou aceitar. São dessas recusas que a mãe literatura gosta. Até porque não sou tolo: esses dois dias são enganosos, logo eu estaria trazendo trabalho para casa."

03 de abril de 2010:

"Patinei durante duas décadas travado por não sei que obstáculos, talvez pelo trabalho excessivo e pelo cansaço das noites mal dormidas (nunca dormi bem, só agora o tempo livre me permite um descanso real). Mas a obsessão é tanta que vou tentar o inusual: uma obra depois dos 57 [anos]. Dentro dos limites pessoais, não é impossível: Maupassant, que era um infeliz, construiu a dele em dez anos."

4 de abril de 2010:

"Em 1988/89 achei que estava condenado: arritmias, felizmente não sistêmicas, mas conjugadas ao estresse me davam uma sensação de morte iminente. O cardiologista me indicou um psiquiatra. Não fui (nunca fui) e me matriculei numa academia. Natação. No primeiro dia não dei conta de uma centena de metros. Meio ano depois eu fazia 800 metros. Mais seis meses e eu fazia 2.000 metros. Hoje baixei para l.000, mas numa piscina maior, num clube aqui perto de casa. Se não desapareceram de todo, as arritmias só se manifestam quando durmo mal dias seguidos ou algo não vai bem. Sem bravata, eu me sinto mais desempenado que aos 35."

24 de abril de 2010:

"Eu estou concluindo a última (ultimíssima) revisão de A guerrilha dos poetas. Nas horas favoráveis, fico achando que ficou bom pra cacete; depois vou baixando a bola."

10 de maio de 2010:

"Eu já estava afiando os dedos para iniciar uma ficção nova quando surgiu uma coisa inesperada que não posso deixar passar: a proposta de um grupo que faz livros de arte de transformar um diário que tenho de três temporadas em Paris num volume de capa dura, mesclando o texto com ilustrações fotográficas. Penso dedicar dois meses na montagem e melhoria do texto, não mais. Título: A biblioteca atravessada por um rio."

31 de maio de 2010:

"No dia 22 próximo sai a publicação de minha aposentadoria. Já me apronto para dizer não à volta sub pecunia. Seria loucura total, uma rendição ignóbil, que a literatura ciumenta não perdoaria."

01 de junho de 2010:

"Vou pela página 70 da novela nova, que não deve e não pode passar de 110. Claro que será preciso reescrever. Mas espero terminar tudo em maio e começar outra coisa. A guerrilha, que de fato dei como terminado, deixei descansando um pouco na gaveta. Coragem a do Cristovão Tezza, hein, de chutar o balde da carreira docente. E de anunciar isso publicamente. Em tese, ele tem razão: a literatura é absolutista."

O último e-mail que recebi dele foi no dia 4 de julho e ele falava da edição de A guerrilha dos poetas, acertada com Luciana Villas-Boas, da editora Record. Eustáquio estava enfim de bem com a mãe literatura, depois de uma vida funcional exemplar, e de ter mantido viva a chama da escrita, principalmente pelo cultivo de um diário – trechos dele foram publicados em Viagem ao centro do dia (A Girafa, 2007), onde esta luta contra a rotina funcionária é descrita.

Tudo estava pronto para ele começar a sua obra. No dia de assinar a aposentadoria, Eustáquio teve um AVC. Depois de semanas internado, sobreviveu. Tragicamente, ficou cego (não pode escrever) e mudo (nem ditar as histórias que devem continuar vibrando em seu interior). Torço para que isso seja passageiro.

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