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O romance, este gênero ocidental, realmente unificou o planeta. Países que antes eram incógnitas culturais hoje se pensam dentro de uma estrutura reconhecível. É este o caso da Coreia do Sul, vista como uma vizinha do Ocidente em Por Favor, Cuide da Mamãe, romance de Kyung-Sook Shin (Intrínseca, 2012). Se os nomes, as localidades, alguns rituais e hábitos são próprios daquela parte da Ásia, a narrativa como um todo traz uma gramática contemporânea.

O relato se desenvolve em torno de uma família interiorana cujos filhos se dispersaram no mundo, vivendo num outro tempo, o tecnológico e consumista, totalmente afastado das histórias de seus pais, um casal de agricultores pouco alfabetizado. A narrativa começa com o final de um tempo: sofrendo de Alzheimer, a velha senhora se perde numa estação de metrô. O eixo narrativo é a busca da mãe pela capital. Todos suspendem suas vidas para tentar achá-la. Mas esta procura é apenas a ponta do iceberg. Na verdade, os parentes começam a procurá-la na memória, descobrindo que a conhecem muito pouco.

O romance funciona pelas recordações dos parentes de uma mulher que só começa a existir para os outros quando desaparece. Cada capítulo trará um ponto de vista. O primeiro é o da filha mais velha, uma escritora sempre ocupada, que vasculha as lembranças para conhecer melhor a mãe. Depois é a vez do filho mais velho, em quem a mãe colocara muita esperança, apoiando-o para que se tornasse promotor público. Ele acabou especialista em marketing, frustrando-a. Ao tentar encontrá-la em Seul, passa pelos lugares onde, desde 30 anos atrás, recém-saído de sua aldeia, ele viveu. Vai assim fazendo um trabalho de reconstrução da imagem materna. A terceira voz é a do marido pródigo, alguém que deixou a casa várias vezes, voltando por se sentir atraído pela esposa e pelo solo em que criaram os filhos. Ele toma enfim consciência do amor que tinha por ela: "Depois que a mãe de seus filhos sumiu, você percebeu que quem tinha sumido era a sua esposa. Sua esposa, de quem você se esquecera durante cinquenta anos, estava presente em seu coração" (p.126).

Nestas três rememorações, eivadas de sentimento de culpa, a figura da mãe/esposa vai se tornando nítida. Ela aparece como uma peça central daquele mundo, uma espécie de guardiã dos valores familiares, apresentada por quem conviveu com ela. No quarto capítulo, é a própria Mamãe, já como uma voz do além, que visita os filhos, revelando suas intimidades, como a existência de um amante que a amparava. Ela se mostra uma mulher de vida intensa, que soube o valor dos filhos e da família, mas que não se anulou. Esta identidade secreta complementa o perfil que os demais fizeram dela.

Em uma cena comovente, no momento da própria morte, ela volta a ser criança e se confunde com a própria mãe, integrando-se assim a uma imagem protetora da figura materna. É sob este signo que o romance terminará, com um epílogo em que a filha escritora viaja para Roma e cumpre, acidentalmente, um antigo pedido da mãe – levar para ela um rosário do menor país do mundo. Só na viagem ela descobre qual é este país – o Vaticano. Mas como a mãe está desaparecida para sempre, ela deposita o rosário aos pés da Pietà, imagem da mãe que sofre. Significativamente, a outra filha, que não precisou fazer a catarse de sua culpa, aparece no epílogo por meio de uma carta dirigida à irmã escritora. Ela tem como centro de sua vida a criação dos filhos, funcionando como versão moderna da maternidade.

Marcado por uma grande riqueza simbólica, com uma estrutura bem arquitetada, com histórias densas e emocionantes, este romance de Kyung-Sook Shin não trata apenas do esquecimento que fragiliza os idosos, mas da necessidade da lembrança de um mundo ancestral, com suas grandezas e misérias, que está sendo apagado pela adesão afoita aos modos de vida modernos. Não sem alguma ironia, o romance termina com uma cena no Ocidente, mas um Ocidente que se quer separado dos valores materiais.

Serviço:

Por Favor, Cuide da Mamãe. de Kyung-Sook Shin. Tradução de Flávia Rössler. Editora Intrínseca. 240 págs. R$ 29,90. Romance.

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