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Miguel Sanches Neto

Memorial do menino morto

Poeta se alterna entre o Rio de Janeiro e a praia de Saquarema, no litoral carioca | Divulgação
Poeta se alterna entre o Rio de Janeiro e a praia de Saquarema, no litoral carioca (Foto: Divulgação)

Em 1989, o jovem Gustavo Adolfo Cox, de 19 anos, se matava numa casa de praia em Saquarema. O motivo teria sido uma desilusão amorosa. Cox tinha sido criado pelo poeta e ficcionista Walmir Ayala, que morreria de problemas cardíacos em 1991. Walmir padeceu, nesses dois anos, o destino de um pai em tal circunstância, tentando dar uma sobrevida ao filho. É este o contexto dos poemas que ficaram inéditos até agora, e que compõem o volume A Viagem.

A palavra viagem assume significações múltiplas no livro. É a viagem de partida do filho, que sai batendo a porta, e tem, portanto, um sentido forte de perda. Mas é também a viagem cotidiana que o pai faz, pela memória, em busca do filho. E aí ela assume um valor positivado, que reverbera na preparação para a viagem do pai, esperançoso de se reencontrar com o filho numa outra dimensão. A estes sentidos transcendentes soma-se um do mundo físico, que fortalece os anteriores. O poeta está sempre viajando do Rio, seu lugar de morada, para Saquarema, o endereço de descanso e agora de tormento.

Os poemas podem ser divididos em dois grupos: os que trazem a data em que foram escritos e os que aparecem sem data. Com isso, o autor localiza no tempo e fora do tempo o seu diálogo poético com o ente desaparecido, criando a tensão do agora (os poemas com data) com o sempre (os poemas sem data), respectivamente, poemas do tempo vazio e do tempo da plenitude. Outra divisão possível para os textos é o da localização geográfica. Os com data foram escritos ou no Rio ou em Saquarema, lugares entre os quais se divide o poeta. Os demais não têm localização geográfica.

Tais detalhes ampliam a tensão do livro, em que o poeta oscila entre duas temporalidades e duas espacialidades, neste projeto de herdar o mundo metafísico.

O livro todo é um doloroso canto de despedida, mas que Walmir transforma em celebração amorosa. Ele não compreende a morte de Gustavo, não suporta a forma abrupta da separação do filho, o que não impede que reconheça o heroísmo desesperado dessa sua última atitude. Por isso, a dor se faz uma oportunidade de cantar o outro, a sua coragem: "E faço deste adeus a minha festa" (p.7), como ele escreve na abertura do livro.

Eis como o poeta escolhe eternizar o jovem, com uma festa triste de despedida, doando ao filho uma existência outra, simbólica: "Não é no mármore, nem na pedra, nem no barro, / nem no ar, / é em mim que te construo" (p.32). Uma construção pela palavra que faz com que o pai amputado do filho seja um memorial dele. Como não quer viver longe de quem partiu, concebe os poemas como um espaço de encontro, pequena tentativa de eternidade.

Este movimento lírico é que ressuscita o filho, em oposição ao estado de abandono em que ficou o seu corpo. Em um dos poemas, Walmir revela a natureza da matéria inerte: "a solidão daquele recinto onde te depositaram, como uma coisa sem uso" (p.44). Os poemas, a memória, a própria vida do pai se encaminhando para a morte, as suas "pequenas conquistas cotidianas", tudo quer vivificar o filho.

Não tendo sido o pai biológico de Gustavo, e se sentindo por isso duplamente vazio ("Eu sou o copo vazio", p.45), pela ausência no seu nascimento e pela ausência maior da morte, Walmir Ayala fez dessas memórias febris uma forma de assumir a paternidade plena.

A experiência da morte de Gustavo, que anteciparia a sua, foi assim um louvor à vida.

Serviço:

A Viagem, de Walmir Ayala. Editora Bem-te-vi, 64 págs. Poemas.

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