"Levantando de madrugada, descubro coisas de grande relevância para o universo. Por exemplo, que as sabiás já começaram a cantar e que têm o mesmo horário meu. Assobiam desesperadamente, para minha alegria, pois são todo um estilo literário. Só deveríamos escrever com a força do canto da sabiá, de forma intensa e comovente."

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Escrevo esta crônica em uma de minhas matinadas. Não só porque me falta tempo durante o dia comercial, que para mim começa às seis da manhã, quando acordo minha filha e a ajudo a preparar-se para a escola, e que termina sabe deus a que horas, podendo se estender até meia noite, quando tenho algum compromisso em eventos da universidade, ou no mínimo até as dezenove horas, quando, corpo moído, retorno para casa.

Como dizia antes de me perder nesta frase, não leio e escrevo de manhã apenas porque me falta outro tempo, mas também por gosto. Neste horário, a cidade civil dorme; mesmo a cidade boêmia está suspensa. E tenho o sossego necessário para fazer minhas pequenas mágicas.

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Claro, isso não é o ideal, é apenas uma adaptação da vida profissional e da familiar para que caiba nelas este corpo estranho que é a vocação para a literatura. Mas em períodos de mais tempo, eu também prefiro a madrugada. Mesmo domingo de manhã, acordo no mesmo horário, entre 4 e 5 da manhã, e me isolo nessa tarefa sem fim de lidar com letras.

O outro lado desta opção é que durmo muito cedo. Quando posso, a partir das nove da noite. Mesmo que não durma neste horário, estando em casa não deixo de fechar a porta do quarto para poder ler em paz na cama. Leio pouco à noite, por estar sempre muito cansado, mas não perco nenhuma oportunidade. A casa continua com seu ritmo, o barulho da tevê na sala é um fundo musical, e eu sigo minha inclinação. Não vejo tevê à noite. E como não tenho tempo durante o dia, vou conquistando uma independência em relação a esse vício. Desisti de acompanhar cinema também, vejo sim um ou outro filme, apenas os melhores do ano (acabei de assistir ao estupendo Tropa de elite) e os clássicos que não conheço.

Por conta de tudo isso, as duas coisas que mais detesto é ligação telefônica à noite e comentários sobre matérias ou novelas da tevê. Isso me irrita profundamente. A primeira delas porque me desperta o sono na hora em que quero descansar o esqueleto. A segunda por me dar sono na hora em que minha mente está acesa. Enquanto a moçada gasta seu tempo comentando o que todo mundo já sabe, eu me perco num livro qualquer, que poucos leram, e vou ganhando outras referências. Azar o meu, é claro. Porque a proposta salvífica da ideologia do momento é igualar a todos por baixo. Como sou teimoso, vou em frente. Ou para trás. Ou para o lado. O importante, para mim, é não ir junto.

Habitar a madrugada é também uma forma de contrariar. É sinal de teimosia. Os que gostam de dormir, devem se perguntar o que leva uma pessoa a seguir tal regime de vida. Já passei a resposta algumas linhas atrás: gosto e falta de opção. Uma mistura perigosa.

Levantando de madrugada, descubro coisas de grande relevância para o universo. Por exemplo, que as sabiás já começaram a cantar e que têm o mesmo horário meu. Assobiam desesperadamente, para minha alegria, pois são todo um estilo literário. Só deveríamos escrever com a força do canto da sabiá, de forma intensa e comovente.

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Até dois meses atrás, os madrugadores éramos apenas os pássaros e eu aqui em casa. Mas desde o nascimento de meu filho Antônio, tudo mudou.

Apesar das cólicas e da amamentação, meu filho dorme até as 4 ou 5 horas da manhã. Deste horário em diante, ele chora ou fica com seus imensos olhos azuis abertos, anunciando para mim que o dia está nascendo. No início, houve protesto, minha mulher e minha filha adoram dormir, mas tiveram que seguir o fuso horário dele. Aliás, nosso – meu e dele. Assim, tornou-se comum todos se reunirem no quarto do Antônio neste horário, para vê-lo mamar, para brincar com ele, ou simplesmente por falta de sono. Como no quarto só existe a poltrona onde ele está sendo amamentado, sentamos no tapete e ficamos conversando.

Neste horário também, talvez por ciúme, pois as fêmeas são muito desconfiadas, Mel, nossa cachorrinha, começa a uivar na lavanderia, e somos obrigados a soltá-la. Ela se reúne ao grupo. Numa madrugada, mais sonada do que em outras, minha filha acordou e nos viu na manjedoura.

– Que família mais louca a minha – ela sussurrou, mais para si própria do que para nós.

Depois se sentou no tapete e ficamos conversando sobre a escola. E logo surgiu seu material de aula. É que ela tem estudado para as provas neste horário, sempre com a assistência atenciosa da Mel.

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Com esta mudança, todos dormimos muito cedo, de volta aos tempos da roça, quando não havia energia elétrica e éramos obrigados a este regime de repouso. Talvez Antônio mude seus hábitos, talvez eu tenha mais tempo no futuro, talvez minha filha comece a demorar-se na balada e só lhe reste a madrugada e as manhãs para dormir, mas enquanto isso não ocorre, vou desfrutando do privilégio de conviver com a família neste horário que antes era só meu.

Tá certo que tenho lido pouco e escrito ainda menos. Mas isso não deixa de ser uma vantagem, pois diminui minhas ansiedades.

E termino agora esta crônica para levar minha filha à escola.

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