| Foto: Felipe Lima

Numa velha crônica, John Steinbeck conversa com seu filho de 11 anos. O menino está sofrendo com a escola, e o escritor diz que nós nos esquecemos como a escola é difícil para uma criança. Aconselha o filho a ter paciência, a aguardar a chegada de um professor que mudará a vida dele. São uns poucos professores que mudam a vida de um aluno. Steinbeck lembra que ele foi um sortudo, teve três professores maravilhosos ao longo da vida estudantil, e todos tinham uma marca: "Não falavam – catalisavam um desejo ardente de saber" (in A América e os Americanos. Record, 2004, p.177). Ele espera que o filho consiga cruzar ao menos com um professor assim.

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Eu tive uns poucos professores que me conduziram a este desejo de saber, um desejo que depois fui conjugando solitariamente nos livros. Entre estes professores está Maria Aparecida Peres, de quem eu vinha tentando encontrar notícias. Perdi todo o contato com a maioria das pessoas com quem convivi no tempo da faculdade (cursada em Mandaguari), mantendo um diálogo não muito assíduo apenas com Hércules Maia Kotsifas. Foi com ele que comecei a conversar sobre a Cida Peres, como a chamávamos. Ele prometeu ir a Mandaguari em busca de informações. Localizada a mestra, poderíamos recuperar um tempo de debates joviais sobre literatura, quando a leitura de um conto clássico qualquer era uma grande descoberta. Falamos várias vezes neste projeto, mas nunca fizemos nada, nem ele nem eu.

Na verdade, fiz um pequeno gesto de aproximação. Eu a citei numa crônica. E em minhas viagens para o interior, sempre pensava nela. Em alguns lugares, comentava minha dívida para com esta professora que fortaleceu em mim o desejo de ler, a fome de saber. Em uma palestra, uns meses atrás, em Campo Mourão, depois de ter mencionado a importância desse encontro com uma pessoa apaixonada pelos livros, fui informado por um dos presentes de que ela morava agora naquela cidade. Achei impossível, e os dados que recebi confirmavam não se tratar de nossa Cida Peres.

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Vestindo-se sempre de maneira elegante, Cida Peres fazia das aulas um momento especial para a turma. Nós, os rapazes, ficávamos completamente fascinados por aquela mulher que falava com tanto entusiasmo sobre livros, que viajava pelo país – era também professora de Cultura Brasileira – e narrava essas aventuras. Entre tantas coisas que ela me passou, está o meu amor por Ouro Preto – cidade que nunca deixo de visitar. E este amor nasceu de uma visita que a Cida fez àquela cidade e que nos foi narrada em aulas sobre o barroco mineiro. Assim que pude, fiquei quase um mês pelas cidades históricas de Minas, e muitos anos depois cheguei a escrever uma série de poemas numa de minhas recorrentes idas à cidade – trata-se do conjunto de 13 falsos sonetos intitulado Autobiografia de Aleijadinho.

Embora lecionasse brasileira, foi a primeira pessoa que me falou em Gabriel García Márquez, que corri para ler e que nunca mais ignorei, porque certas ignorâncias são imperdoáveis. Lembro-me que Cida havia lido um livro de Gabito (sim, adquiri intimidade com o autor, essa intimidade que a leitura devota nos dá) durante uma cirurgia, o que fez com que ela ficasse com fama de mulher ilustrada entre as enfermeiras.

Terminei a faculdade e comecei novas descobertas. Visitei a professora logo em seguida, e a encontrei meio apreensiva. Algum tempo depois, ela me deu uma carta de apresentação para a seleção do mestrado. E a perdi de vista. Porque o bom mestre nos ensina a povoar os caminhos para que possamos nos afastar.

Mas no último ano, vinha me sentindo em dívida com este passado. Onde andaria Cida Peres? Por que eu nunca mais ouvira falar nela? Como uma professora assim tão especial desaparece do cenário do ensino superior de um Estado pequeno como o nosso? Teria parado de lecionar?

Estava em uma palestra em Cascavel quando uma amiga de sala me procurou. Disse que tinha ido me ver para dar uma notícia. Cida Peres havia morrido em Campinas. Eu quis saber mais detalhes. Ela disse para eu procurar na internet. Já tinha feito isso sem sucesso, mas esta amiga me alertou para eu acrescentar o sobrenome completo. Na volta para casa, foi a primeira coisa que fiz.

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"MARIA APARECIDA ZANATA PERES – Faleceu nesta cidade com 64 anos de idade, era filha do Sr. Alonso Peres Munhoz e Sra. Maria Zanata. Seu corpo foi removido para a Cidade de Mandaguari/PR."

Eis a nota que encontrei num site em Campinas, datada do dia 12 de junho de 2008. Soube que deixou Mandaguari em 1993 – mas até agora desconheço o porquê e as circunstâncias. Fez mestrado na época que este seu aluno estava fazendo doutorado – ela na Unesp (pelo que vi na internet) e eu na Unicamp.

Desde a sua morte, sem saber de nada, eu vinha tentando reparar esta injustiça, trazendo de volta uma professora que mudou muitos destinos aqui no Paraná. Eu teria sido outra pessoa se não tivesse freqüentado as aulas de Cida Peres, em meados dos anos 80, lá em Mandaguari. Neste período, talvez em 1986, ganhei um concurso de poemas em que ela foi do júri. Depois, a professora o publicou no jornal da cidade. Sempre penso naquele poema que falava de um homem de negócios que cruzava um jardim sem ver a beleza. Cida gostara muito do poema que perdi.

Podemos perder um poema ou mesmo um professor assim tão importante. Mas nunca é uma perda total. Steinbeck diz que o bom professor deixa em nós sua assinatura, inscrita em nossas mentes. E termina dizendo que ele é o manuscrito não-assinado daquela longínqua professora. É assim que me sinto, como um manuscrito não-assinado de Cida Peres. Um manuscrito tão tardiamente desvelado.