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"Ele declama trechos longos de Camões e outros poetas. Tem uma memória fantástica para o verso. Fala da nossa idiotice, de seus poemas, de tradução de poesia, critica a cultura contemporânea. Uma noite cheia."

Eu tinha ido buscar o poeta no hotel, combináramos uma agenda mínima para que ele conhecesse a cidade. Nunca antes tinha estado no Sul. Quando cheguei ao hotel, ele não estava e nem recado deixara. Tudo poderia ser simples se o poeta possuísse um celular, mas isso era esperar muito de quem vivia imerso na literatura do século XIX.

Restava-me esperar resignadamente seu retorno. Por esta desobediência às obrigações ele era poeta, e talvez por isso mesmo eu tivesse desistido da poesia, me tornando um funcionário público, tal como fora acusado quando de minha estréia na ficção. Havia uma lógica qualquer nisso tudo. Eu estava sentado no hall do hotel. O poeta vagava pela cidade que conhecia naquela tarde. Dei alguns telefonemos a amigos tentando localizá-lo. Ninguém sabia do seu paradeiro. Só poderia ter saído para beber ou para comprar livros usados.

Cansado de esperar, decidi dar uma busca na redondeza. Olhei os bares, mas não o encontrei. Como havia um sebo nas imediações, fui em busca do fugitivo. No meio da quadra, eu o vejo, barba imensa, cada vez mais parecendo um cangaceiro, figura que ele idolatra, com sacolas plásticas na mão. Disse seu nome, ele se assustou com este chamado em pleno centro de Curitiba. Depois de fixar os olhos, com cara de espanto, me reconheceu. Então se lembrou do nosso compromisso.

– Ficou esperando muito tempo?

– Não, só umas duas horas.

– Ainda bem – ele respondeu, sem perceber a ironia.

– Então vamos fazer logo a visita.

E logo estávamos a caminho da Vila Izabel, para conhecer a sede mundial do Instituto Neo-Pitagórico, que em 26 de novembro de 2009 completará 100 anos. Lembrei-lhe de meu raciocínio – diante de seu desaparecimento eu deduzira que ele havia saído para beber ou para buquinar.

– Os dois – ele disse, rindo.

Estava levemente bêbado na tarde quente.

– Achei que fosse passar um pouquinho de frio nesta cidade.

Aumento a potência do ar-condicionado do carro e vamos conversando sobre poesia. O poeta faz ultimamente a defesa do Nikos Kazantzákis, de volta ao mundo grego, agora contemporâneo. Não se conforma que as pessoas não tenham lido este autor. Por sorte, li um único livro dele, que não é o melhor, segundo o poeta.

Chegamos ao local que Dario Vellozo, em homenagem a um topônimo de sua infância carioca, batizou de Retiro Saudoso. Uma quadra arborizada, tendo em um dos cantos o Templo das Musas. Usando um portão lateral, entramos na propriedade, e fomos atendidos pelo genro de Dario, o Dr. Rosala Garzuze, que nos recebeu emocionado, levando-nos à sala dos cursos por correspondência. Ali também funciona uma livraria. E o poeta e o Dr. Rosala, que está firme nos seus 101 anos, começam a falar de ocultismo, parapsicologia e outros assuntos, citando autores. Eu fico um pouco à margem.

Logo vamos conhecer o Templo das Musas, guiados pela neta de Dario. O prédio está bem conservado, depois do incêndio que destruiu parte das obras raras. Percorremos o interior, o poeta se delicia com umas coleções de revistas do começo do século 20 e comenta leituras que nunca fiz e dificilmente farei.

Depois sugiro que o poeta, que tem horror à poesia de vanguarda, tire uma foto nas escadarias do templo, tal como fez no passado o Paulo Leminski. O poeta concorda, eu faço as fotos, para que fique eternizada a visita. O poeta é colecionador de fotos antigas autografadas, e acaba de adquirir duas de Dario Vellozo num sebo no Rio.

Na volta, Dr. Rosala está mais emocionado, caminha conosco pela propriedade, conta fatos, mostra onde estava edificado o chalé de madeira em que vivia Dario, e fala que é uma alegria nos receber, hoje as gerações mais novas não valorizam as coisas do espírito. Ele nos abraça com força, talvez querendo que fiquemos mais, mas o poeta tem pressa.

Deixamos Retiro Saudoso no fim da tarde. E vamos direto ao hotel. O poeta quer descansar para a palestra que vai dar à noite. Eu fico pelos sebos da região, sozinho. Depois passo numa livraria de shopping, faço um lanche e, na hora combinada, chego para a palestra. O poeta agora foi pontual.

Ouvimos sua exposição desesperada. Ele declama trechos longos de Camões e outros poetas. Tem uma memória fantástica para o verso. Fala da nossa idiotice, de seus poemas, de tradução de poesia, critica a cultura contemporânea. Uma noite cheia. Ao fim da palestra, uns poucos amigos se reúnem para continuar ouvindo o poeta. Pergunto onde ele quer ir.

– Beber submarinos. Um amigo me disse que é muito bom.

Num bar no Largo da Ordem, sentamos em mesas rústicas e pedimos submarinos (caneco de chope com um canequinho de estanhegue dentro) e carne de onça. Agora a conversa é mais franca, mas ácida, mais espirituosa. O poeta autografa um livro a um dos componentes da mesa. Bebemos até o começo da madrugada. Aos poucos, as pessoas vão indo embora. E a voz do poeta enche o bar.

Vou ao banheiro e quando volto os canecos de chope estão espalhados na mesa, há uma confusão qualquer, um dos amigos enfrenta um vizinho de mesa. Fico sabendo que este se ofendeu com uma piada gritada pelo poeta e partiu para a briga. Está gritando, acusando nosso amigo, que placidamente apóia os cotovelos na mesa molhada de chope. Parece não entender nada. O segurança ameaça nos retirar. Então exijo a presença da polícia. Não vou deixar que um drogadito desses – e aponto o agressor – perturbe nosso encontro. O dono do bar aparece, o garçom explica o ocorrido. Repito corajosamente a palavra drogadito. Nisso, o poeta acorda de seu transe, dá um murro na mesa, chama o agressor daquilo e rompe para cima dele. Acordou o cangaceiro.

Peço a polícia, vamos fazer uma devassa no bar, saber onde o cara se drogou. O segurança, preventivamente, retira o agressor. E o garçom, para nos agradar, serve nova rodada de submarino. No meio da madrugada levo o poeta ao hotel. Ele voltará no dia seguinte ao Rio. Foi sua primeira visita ao Paraná. Conversamos sobre poesia no carro.

Na frente do hotel, descemos para as despedidas. Tudo foi ótimo, digo. Nós nos abraçamos. Ele convida para uma bebida num dos bares ainda abertos. Digo que não posso. O poeta me olha com certa piedade. E eu, o ex-poeta, o funcionário público, sigo comportadamente para casa.

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