Abro a porta de vidro meio ressabiado e cumprimento às cegas as pessoas sentadas em sofás dispostos ao longo das paredes. É sempre constrangedor esperar a consulta no meio de tanto paciente, por isso existem as velhas revistas. Depois de me apresentar à secretária, procuro um lugar vago e levo para lá um exemplar da Caras.
Sento-me sem olhar para os lados, preparando-me para passar despercebido. Mas é impossível, pois reconheço a voz do Professor, que, do outro lado da sala, faz uma convocação:
Menino, venha se sentar aqui, pra gente prosear um pouco.
Sorrio com o máximo de dissimulação e já estou cruzando o campo minado de olhares. Todo mundo quer ficar quieto com seus problemas, a menor publicidade incomoda, psiu!, não vêem que estou aguardando a posição do médico sobre meu último exame?
Teu problema também é na próstata? pergunta o Professor.
E todos controlam os risinhos, mas não conseguem esconder o brilho maroto nos olhos, embora saibam que esta é uma clínica do coração.
O professor me abraça calorosamente antes que eu me acomode no sofá.
Nada melhor do que consulta médica para rever os amigos.
O Professor não está com cara de doente tento desconversar.
Quem vê cara, não vê coração e ele solta uma gargalhada pelo trocadilho, batendo com a mão no peito: Tenho que cuidar da máquina, está falhando.
Entro no espírito da conversa:
Algum amor novo, com certeza.
Ressaca.
Voltou a beber?
Não, meu caro. Ressaca da campanha eleitoral.
Ah, entendo.
Sofri com a disputa. Meu coração não suporta mais aquele ritmo de batimento cardíaco.
A coisa foi feia, mesmo. Quase o homem não ganha. Bastava a revolta de um chefete e a coisa toda estava perdida.
O Menino não entende mesmo de política ele fala num tom de superioridade, chamando a atenção de todos.
Então como o senhor me explica a vitória?
Começa que não houve vitória e ele faz um silêncio para valorizar tão estapafúrdia declaração.
Como assim? fico intrigado.
Ninguém ganhou a última eleição, coisa que qualquer um percebe.
Ah, Professor. Essa é pesada, hein. Quer dizer que não temos um cacique eleito?
Isso mesmo, não temos um. Temos dois.
Dois caciques? O homem ganhou dentro dos conformes.
Tanto não ganhou que questionou o resultado das urnas. Já viu ganhador sugerir recontagem dos votos?
O calor, Professor. Muita pressão. Coração comandando tudo. Daí a gente diz o que não devia dizer.
Afirmo, reafirmo e treafirmo: temos dois eleitos. Sem tirar nem pôr.
Todos no consultório acompanham os argumentos do Professor, que tem um domínio total da platéia.
Estou liderando um movimento ele continua.
Para convocar novas eleições?
Jamais, o resultado das urnas é legítimo. Temos que ouvir o povo.
E o que o povo diz, então?
Que temos dois caciques.
Um fez não sei quantos mil votos a mais do que o outro. E a lei diz que bastava um voto de diferença.
Errado. As pessoas não estão sabendo interpretar os fatos. Na campanha, quando os institutos de pesquisa dão os números, qual a ressalva que é feita?
Que a margem de erro pode ser de tantos pontos percentuais, geralmente dois.
Aí, Menino, agora estou te reconhecendo. E quando a diferença é menor do que esta margem?
Empate técnico.
É isso, tivemos empate técnico nas eleições. Portanto, temos dois eleitos. Se vale na pesquisa, tem que valer também na apuração. Com diferença inferior a 2%, os candidatos deveriam dividir o poder. É a vontade do povo.
Como? Cada um administraria por 6 meses?
Nada disso. Dividiríamos o estado em dois. O separatismo está no nosso sangue. Não queríamos o Estado do Iguaçu? Não desejamos nos separar desse câncer que é o resto do país?
Um para a capital e outro para o interior?
Você não acompanha mesmo meu raciocínio. Um governaria as cidades grandes, onde foi mais votado. E o outro as cidades pequenas. Um acerto simples. Teríamos governos independentes.
Mas as pequenas cidades não geram os impostos necessários para os investimentos.
Bem, cada um administra com o que tem. Essa é a lei da vida.
Acho injusto.
Ao contrário, é muito justo. Assim, o resultado contentaria os dois blocos de eleitores.
Temos apenas um eleito, Professor. E o desafio dele é não deixar que haja nenhum tipo de separação.
Veja...
Ia começar novo argumento quando o médico o chamou. Ele se levantou rápido e foi fazer um check up para enfrentar a emoção dos próximos lances políticos.
E todos na sala voltaram às revistas velhas, fingindo indiferença.