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Miguel Sanches Neto

O sino quebrado

Chegara a São João del Rei por caminhos tortos. Todos os caminhos são tortos, ele gostava de dizer a si mesmo, mas estamos sempre tentando endireitá-los. Na primeira oportunidade, deixou de lado os compromissos para iniciar sua via sacra pessoal. Fazia 20 anos que não vinha à cidade, o que é o mesmo de nunca ter vindo. Outro homem estava ali. Mais sofrido, talvez mais reverente.

Quis a coincidência que ele acabasse hospedado numa pousada já conhecida, a janela de seu quarto ficando de frente para o cemitério da Igreja de São Francisco de Assis. Duas décadas atrás, fora visitar este edifício desenhado por Aleijadinho, e que traz duas pequenas esculturas dele. Na saída, o sacristão se ofendera com o fato de ele não ter ido ao túmulo de Tancredo Neves.

Ele então seguiu para a parte dos fundos, ouvindo as explicações das qualidades do político. Ainda era recente a comoção nacional pela morte do presidente que iniciara o processo de abertura política do país.

Desta vez, visitou rapidamente a igreja e, sem que ninguém exigisse, procurou o túmulo mais famoso do cemitério. Na laje, abaixo do nome, encontrou o cargo do morto ilustre: "presidente eleito do Brasil". O que chamou a atenção dele foi a palavra "eleito". Tinha dois sentidos. O primeiro de caráter explicativo: ele apenas fora eleito, sem nem chegar a assumir a presidência. Mas havia outro, que o agradava mais. Embora de forma indireta, foi o primeiro presidente eleito em consonância com a vontade popular. O segundo sentido corrigia o primeiro, e dava uma força muito grande ao adjetivo.

Mas não era aquilo que ele buscava. Nem as informações sobre o barroco mineiro. Vencido este itinerário, ele logo se informara de qual a mais bela missa nesta terra de tantas igrejas.

Era fim de tarde quando passou pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário, erguida pelos negros. Estava fechada, mas ele ficou uns momentos diante de sua fachada. Depois, seguiu direto para a Catedral de Nossa Senhora do Pilar. Uma missa chegava ao fim. Ele se persignou – há quanto tempo não usava esta palavra? – e se sentou em um dos últimos bancos. Minutos depois, as pessoas saíam e começava outra missa breve, que seria cantada. Ele se aproximou do altar, e rezou. Nos fundos, uns poucos músicos, parte da orquestra centenária, executavam algumas peças sacras.

Tocado pela música e pelo brilho do ouro velho nos altares, ele deixou a igreja com os fiéis que haviam participado da celebração, tomou um beco ao lado e subiu até a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que estava iluminada. Olhou a cidade lá do alto. Mas já era hora de voltar.

Na manhã seguinte, antes dos compromissos, refez o mesmo percurso. Na escadaria das Mercês, viu o seu nome gravado nas pedras e tomou isso como bom augúrio. De alguma forma, ele participava daquele mundo. Também encontrou dois desenhos da igreja na pedra. Aqueles traços infantis despertaram nele uma comoção boa. Enquanto a maioria dos turistas fotografava, alguém resolvera deixar na pedra imagens trêmulas da igreja.

Das Mercês, seguindo pelas ruas tortuosas da cidade, atento a cada detalhe, ele chegou à Nossa Senhora do Carmo. Entrou sem esperar muito desta igreja que não tinha nada atrativo: nem o traço de Aleijadinho, nem ouro, nem escadaria. Mas foi tomado pelo branco das paredes. Era algo reconfortante ser envolvido por aquela brancura depois de ter comungado com a escuridão barroca. Ele se sentou, rezou devotamente, mas sem prestar atenção em nenhuma imagem, extasiado por aquele imenso ventre branco.

Quando olhou a imagem de Nossa Senhora do Carmo, reconheceu no menino Jesus que ela trazia no colo a face de seu filho. Ali estava ele, representado naquele menino loiro, com uma mecha de cabelo caída na testa. Ele já não rezava a um deus distante, abstrato, rezava ajoelhado diante de seu próprio filho, um filho que era luz vertida sobre ele, sobre todos.

Na saída, parou diante da porta que levava a uma das torres, encontrando um sino quase no chão. A música dos sinos era uma experiência de levitação espiritual. Quando a ouvia, algo dentro dele, como as aves, se assustava e subia às alturas. Tratava-se de uma sensação física de libertação. Tinha sentido isso várias vezes, mas só ao ver aquele sino aterrissado ali entendera tudo.

O sino estava quebrado havia anos, leu numa placa ao lado. Ninguém sabia de sua origem. Nem quem o ofertara, nem quando fora fundido. Há apenas uma referência à sua refundição. Ele estava estragado no começo do século XIX e fora refundido em 1812. Um trabalho caro e difícil, feito para que ele voltasse a ter um som melodioso.

O intrigante é que em 1823 há referência a outra fundição, inscrita na bacia do sino. E mais intrigante ainda é que depois desta segunda tentativa, ele se estragara de novo. Fora abandonado por não poder ser corrigido? Até o aço tinha alma? Há maldade na matéria? São perguntas que ele se fazia enquanto deixava a igreja, movendo-se entre pessoas que começavam mais um dia de trabalho.

Parou de uma vez ao ouvir um sino tocar às suas costas. Foi um toque breve, o suficiente para que ele voltasse a ficar radiante.

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