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–Há problemas de vista que chegam de uma vez – um amigo me diz.

Não quero acreditar, pois, próximo dos 45 anos, venho tendo uma autonomia de visão que me orgulha. A vantagem de não usar óculos é que a pessoa não corre o risco de perdê-los. Vocês não imaginam a importância disso para um distraído. Então, vou confiando mais um pouco na minha capacidade de enxergar bem, a despeito das provas em contrário.

No restaurante, se não consigo ver os ingredientes de um prato que não conheço, culpo a luz fraca do ambiente ou o brilho do cardápio, que produz reflexos, atrapalhando a leitura – e isso acaba divertindo minha mulher, que usava óculos até um dia desses.

Desde jovem, ela tem alguma dificuldade de visão. Mas os seus óculos ficavam principalmente no porta-luvas do carro, para quando fosse abordada por algum policial – na sua carteira de motorista constava esta necessidade.

Depois de anos sem retornar ao oculista, na última renovação da carteira, a médica de plantão atestou que ela está enxergando muito bem. Tinha enfim se curado de um mal, voltando a ver como no passado.

Em nossa primeira viagem depois deste pequeno milagre, chegando em Mandaguari, ela olha as plantações que margeiam a pista e, distraída, pergunta:

– Que plantas são aquelas que soltam pequenas flores pretas?

Minha filha e eu nos rachamos de rir.

– Não são flores. Mas a tela usada para diminuir o sol sobre os parreirais.

E ainda tripudio:

– Onde estão os seus velhos óculos?

Não insisti para que ela voltasse a usá-los, pois sempre há o risco de ver coisas desagradáveis, como o rosto já um tanto envelhecido do marido. Uma vez ou outra, ela troca algumas figuras da paisagem, mas nada muito grave.

Recentemente, minha filha começou a reclamar de dores de cabeça. Uma das hipóteses era um probleminha de visão. Perguntada se alguém usava óculos em casa, ele teve que dizer que não. Mesmo assim, acabou no oculista, de onde veio alegre com uma receita para óculos, talvez sonhando com um novo visual.

A adolescência é isso, tudo se transforma em oportunidade de se experimentar em outro papel. Queremos ser quem ainda não somos. Uma pequena alteridade. Pintar o cabelo. Colocar piercings. Tatuagens. Felizmente, minha filha poderá modificar-se apenas com o acréscimo de óculos. Foi à ótica e escolheu um modelo da Calvin Klein. Ela pertence à geração das grifes, e os óculos devem fazer parte de todo um aparato da moda. Com este novo look, e sendo uma menina alta, vai ficar com ar mais adulto.

Calei-me diante desses fatos, para espanto de todos aqui em casa, já acostumados com minhas reclamações. À noite, recordo tudo com minha mulher.

Nós ainda não nos conhecíamos quando inventei que estava com problemas de vista. Minha mãe me levou a um oculista que atendia por atacado em suas visitas a Peabiru. Havia um cartaz dizendo que no dia tal em tal lugar o dr. Fulano estaria fazendo exames de vista. Fui com um amigo e assim arranjamos nossas receitas.

Comprei umas armações redondas, imitando madeira, e passei a ficar parecido com o John Lennon. Meus cabelos eram encaracolados e cumpridos, e minha silhueta de uma magreza quase doentia. Foram alguns anos com este pequeno problema de saúde. Naquela época, não ia a lugar nenhum sem meus óculos. E, como começava a se espalhar pela cidade que eu queria ser escritor, os complementos caíam muito bem com a imagem que eu queria que tivessem de mim. Guardo uma única foto deste período, eu de camisa xadrez na frente do colégio agrícola, junto com dois grandes amigos da época, também exibindo seus óculos.

Quando conheci a Ju, já tinha voltado a enxergar bem e a primeira atitude que tomei foi cortar bem curtinho o meu cabelo, para lhe fazer uma surpresa. Surpresa que teve efeito contrário, pois ela confessou que os preferia cumpridos. Foi com cabelos cumpridos e encaracolados que, alguns anos depois, me casei.

Com este histórico, não ia me opor à decisão de nossa filha de, a partir de agora, ter uma pequena deficiência de visão, na mesma intensidade que aquele médico itinerante encontrara em mim – meio grau. Por mais que a ciência tenha evoluído, os diagnósticos continuam idênticos aos de 30 anos atrás?

Para brincar com ela, lembrei de quando meu avô começou a usar óculos. Ele já tinha mais de 70 anos, era completamente analfabeto e vivia sem fazer quase nada numa chácara no final da zona urbana de Peabiru – região hoje tomada por loteamentos populares.

Foi numa visita de fim de tarde que o encontramos, minha mãe e eu, usando óculos para perto. Ninguém podia acreditar naquela mudança.

– Vô, para que isso? O senhor já não trabalha e nunca aprendeu a ler.

Ele arrumou a armação no nariz e falou, olhando bem em nossos olhos, de forma séria.

– Para poder tirar meus bichos de pé.

Não rimos na hora. Sabíamos que era autêntico o seu projeto. Não enxergava mais e não queria pedir este pequeno favor a ninguém. Tirar bicho de pé era algo muito íntimo.

Agora, quando minha vista se revela cansada, o que talvez seja uma garantia de paz, pois perderei a capacidade de ver criticamente tudo o que me acontece, eu gostaria de poder contar com esta inocência roceira, já que não tenho mais o desejo adolescente de parecer uma pessoa madura.

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