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Como era seu hábito, levantou cedo. Esta propensão para a insônia o ajudava a diminuir o atraso de suas muitas atividades. Mas, naquele sábado, não tinha nada para fazer. Não era o tipo de pessoa que pudesse não ter nada para fazer. Isso não estava em seus planos, pois não conseguia lidar com essa mania de ócio. Mas agora se encontrava em um hotel, numa cidade diferente, sem poder se distrair de si mesmo. Era isso o trabalho, uma forma de nos distrairmos de nós mesmos. Durante os três dias em que ficara hospedado ali, não desperdiçara tempo. Ele não suportava desperdícios. A pessoa se entretém com bobagens e depois quer prolongar mais e mais a vida, para continuar nessa vadiagem.

Quando entrou no apartamento, o funcionário que levava a sua mala quis explicar o funcionamento de uma tevê sofisticada. Ele não aceitou a aula. O outro ficou com o controle na mão, sem saber o que fazer. O hóspede tomou o controle e o guardou na gaveta do criado.

– Se o senhor quiser dicas de restaurantes, de bares e de... mulheres. Boates, o senhor sabe, né?

– Muito obrigado, mas fora de casa tento ser celibatário – ele disse.

Estava com uma nota de R$ 10 para dar ao funcionário, mas essas invasões na sua intimidade fizeram com que perdesse o impulso de recompensa. Agradeceu o outro e fechou a porta.

Não via tevê. Não ia a bares para beber. Estava em uma fase de dedicação completa aos seus muitos projetos. Viver tudo intensamente. Sem intervalos para descanso. E foi isso que fez durante a viagem. Cumpriu seus compromissos, leu os dois livros que havia trazido, tomou notas em seus cadernos, respondeu e-mails na sala de internet do hotel. E agora estava ali, numa madrugada, sem ter o que fazer por algumas horas.

Lembrou-se de uma frase do pintor Francis Bacon: "Ah, eu não preciso de férias; ninguém precisa, realmente. Isso não passa de uma convenção. Eu mesmo abomino feriados". Assim como Bacon, ele nunca conseguia relaxar, mas agora tinha aquele breve feriado, espaço vazio entre a hora que acordara e partida para o aeroporto. Como era muito cedo, não conseguia achar uma ocupação salvadora.

Tomou um banho longo, arrumou a mala, mas ainda não era hora do café no hotel. Na portaria, constatou que os jornais não haviam chegado. Nenhum projeto para aquela sobra de tempo. E ele organizara a vida para nunca acontecer isso.

Saiu pela cidade. Estava ainda escuro. Se ao menos tivesse trazido tênis e roupa adequada poderia caminhar em algum parque. Só lhe restava vagar pelas avenidas iluminadas, sentindo o sapato apertar seus dedos. Os últimos boêmios procuravam o caminho para casa. Um travesti quase nu, os lábios borrados de um batom vermelho-carne, andava com olhar perdido. Prostitutas bebiam nas mesas externas dos bares. Mendigos sonhavam no chão das calçadas. Eram os restos da feira noturna.

Pensando nisso, resolveu ir ao mercado central, que logo abriria. Sabia se localizar razoavelmente na cidade estranha. Poucos carros, uns mendigos ainda acordados, bares onde os desocupados gastam as últimas energias. Cervejas. O mundo acontecia em torno de garrafas de cerveja.

No mercado, poucas bancas aber­­tas. Ele ficou rodando pelos labirintos. Numa ala, cheia de lojas de animais e de ração, ouviu um galo cantar. Galinhas cacarejavam. E muitos passarinhos engaiolados seguiam convocando o dia.

Quando ele saiu para a rua, sem ter comprado nada, a manhã já estava de prontidão. Andou sem rumo. Nas lixeiras, viu uma intervenção de grafiteiros: um ícone com a boca aberta, desses usados em jogos, chamados de come-come. E a frase: oba, chegou a comida. Não encontrou nenhum esfomeado catando o desjejum nas lixeiras. Eles ainda dormiam, porque era sábado. Aliás, para eles, no calendário só havia sábados.

Andou mais um pouco e viu uma banca de revistas. Munido de dois jornais, tinha agora o que fazer. No caminho do hotel, encontrou um café com mesas na calçada. Os garçons ainda arrumavam as cadeiras. Ele se sentou em uma delas, abriu o primeiro jornal e começou a ler. O garçom se aproximara silenciosamente. Passados uns poucos minutos, o viajante notou a figura ao seu lado, bem na hora em que acabava de ler o primeiro caderno.

Pediu suco de abacaxi com hortelã e croissant de chocolate. Depois tomaria um café amargo. Veio o pedido quando ele estava no meio da leitura do suplemento cultural. Comeu lendo uma matéria sobre um poeta catalão. Finda a leitura, olhou as pessoas ao seu redor. Duas moças, que também tomavam café sozinhas e liam. Uma escrevia num caderno. Os cadernos voltaram. E isso o alegrou.

Viu então dois meninos dormindo num banco de concreto pró­­ximo das mesas. Eles se co­­briam com papelão. Uma cena comum. Mas não me canso de sofrer com isso, disse para si mesmo. Eles conversavam amistosamente. O mais novo espreguiçou, como se tivesse dormido numa cama.

Saíram em silêncio e ficaram numa esquina, esperando não se sabia o quê. Na mesa ao lado daquela onde eles dormiram, sentou-se uma jovem família. Os pais fizeram os pedidos enquanto o filho brincava no mesmo banco de concreto que fora cama para os meninos de rua.

– Agora vamos lavar as mãos que a comida chegou – a mãe disse.

O viajante pagou a conta, saiu dali e deu dez reais para os meninos que olhavam tudo a distância. O menino mais velho lhe estendeu a mão ossuda e suja. Eles se cumprimentaram como pai e filho.

E de novo ele não tinha nada para fazer.

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