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"A primeira quebra da rotina foi deixar os sapatos na sala. Ele ainda os olhou, um sobre o outro, desolados como bagagem abandonada na plataforma de uma rodoviária. Não precisariam dessas malas no lugar para onde iriam? Era estranho ver os sapatos engraxados e, por isso, com aspecto de novos, esquecidos assim, como se não tivessem valor nem utilidade. Os cadarços permaneciam amarrados, indicando que eles não tinham ainda se dado conta de que era hora de descanso. Na sua consciência de coisa, esperavam continuar andando, prontos para passos que não viriam."

Quando chegou do trabalho naquele distante fim de tarde não tinha a menor idéia do rumo que sua vida tomaria. Deixou o carro com os vidros abertos, a porta da garagem apenas com uma das travas, sentou-se no sofá e, como em todo final de jornada, tirou os sapatos com os próprios pés, ouvindo-os cair no piso de madeira. Tinha sido assim por anos. Chegar, descalçar os sapatos, ficar uns minutos espreguiçando no sofá, depois ir para o banheiro do quarto e tomar banho, colocar uma bermuda velha, uma camiseta de promoção, chinelas de dedo e ligar a tevê para esperar que a mulher chegasse do trabalho e a filha da faculdade.

Tudo estava rigorosamente dentro da rotina, o maquinismo funcionava com a força das coisas que não pensam. Seria assim por mais 15 anos, quando então conquistaria, com a aposentadoria, o direito de usar suas bermudas e camisetas velhas durante o dia todo. Era isso que o aguardava, usar roupas folgadas, não fazer a barba, ver televisão na parte da tarde. Talvez até retomasse o projeto de escrever um dos livros planejado na juventude. Só não se transformaria num velhinho esportivo, desses que descobriram a jovialidade aos 70 anos. Isso jamais. Queria ser um velho envelhecido, desses que resmungam por qualquer coisa, que repreendem as gerações mais jovens, que amaldiçoam o progresso, como tinham sido seus avós e bisavós. Embora existam tantos idosos, estavam faltando velhos que agissem como tais.

Pensava em tudo isso enquanto deixava o corpo descansar no sofá. Dentro de meia-hora, a família estaria em casa. Este o melhor momento do dia. Contariam entre si as coisas do trabalho, reclamariam dos colegas, falariam do que os aguardava no dia seguinte. Depois de alguns minutos, esqueceriam esses assuntos e ficariam vendo tevê em silêncio, ele talvez até pudesse lembrar de algum episódio da infância, a filha iria rir de suas trapalhadas infantis, de como se machucava por qualquer coisa, a mulher traria umas frutas, depois todos iriam tomar chá na cozinha, roer umas torradas insípidas e furtar, na geladeira, uns bagos de uva. Estavam todos de regime na impossibilidade de fazer atividades físicas.

Reuniu as forças e seguiu ao quarto para o banho. A primeira quebra da rotina foi deixar os sapatos na sala. Ele ainda os olhou, um sobre o outro, desolados como bagagem abandonada na plataforma de uma rodoviária. Não precisariam dessas malas no lugar para onde iriam? Era estranho ver os sapatos engraxados e, por isso, com aspecto de novos, esquecidos assim, como se não tivessem valor nem utilidade. Os cadarços permaneciam amarrados, indicando que eles não tinham ainda se dado conta de que era hora de descanso. Na sua consciência de coisa, esperavam continuar andando, prontos para passos que não viriam.

Ele entrou no quarto e sentiu um cansaço sem precedentes. Nunca antes se esgotara tanto. E a cama estava convidativa. A diarista tinha trocado fronhas, lençóis e mudado a colcha. Ele apreciava a primeira noite na roupa de cama limpa. Havia sol no meio das fibras do tecido. Seu sono era límpido em tais circunstâncias. Então se lembrou e disse em voz alta: sinto um cansaço para toda a vida. E na mesma hora ficou em pânico. Não gostava de pronunciar coisas assim. A força da palavra. Ele acreditava na força da palavra. Na maldição de quem a usava sem consciência de seu poder para o bem e para o mal. Olhou para o quarto. Ninguém tinha ouvido. Talvez as palavras não se cumprissem. Por um segundo, sentiu alívio. Ninguém tinha de fato ouvido aquela frase. Mas logo se deu conta. Ele tinha ouvido. E jamais se esqueceria dela.

Deitou-se de roupa, quebrando mais uma rotina. O maquinismo corria o risco de emperrar. E então ele dormiu, para ser logo acordado pela mulher. Ela falava algo, talvez o exortando ao banho. Suas pálpebras se levantaram sonolentas, ele via a mulher mas não conseguia entender. Fechou os olhos e ficou na escuridão interior, embora a lâmpada do quarto continuasse acesa. Quando abriu novamente os olhos, viu a filha. Depois não viu mais nada.

Logo não sabia o que era noite e o que era dia. A mulher trocava sua roupa, passava panos úmidos em seu corpo, mudava os forros de cama, empurrando-o para um lado e para o outro. Deixou de dormir com ele. E a cama de casal se tornou seu mundo vasto mundo. Nunca mais sairia dali. O quarto era um sarcófago, com seu cheiro de azedo, de podre, de rançoso. Quando conseguia, erguia as mãos até a cabeça e sentia os cabelos longos e alvoroçados. Vultos entravam e saíam, alguém lhe dava uma papa qualquer em colheradas que esbarravam nos dentes. Tinha sempre um gosto acre na boca.

Perdeu a noção do que era dormir ou acordar. Vivia num estado intermediário entre o sono e a vigília, entre o sonho e a realidade. Em alguns momentos, sem explicação, ele sorria. Poderia ter gente no quarto ou não, ele sorria, indicando que talvez, lá nas suas planícies de lençóis ensolarados, ele pudesse ser feliz. Sorria com um ar de monge, um sorriso discreto, íntimo.

Quanto tempo havia se passado? Ele não sabia. A filha fora embora. Talvez tivesse se casado, ou arrumado emprego em outra cidade. A mulher aparecia agora com outro homem, um namorado, um amigo ou o novo companheiro? Era o homem que o erguia para que ela trocasse a roupa de cama. E ele se sentia como o bebê de muitas décadas atrás, o pai o tomando nos braços. Nestas horas ele invariavelmente sorria ao estranho.

A diarista cortava seus cabelos e sua barba com a tesoura de costura. Ele sentia as costas, as nádegas e as pernas cheias de escoriações. E um cheiro de pomada para assadura dominava o quarto. Era a diarista quem trocava suas fraldas. E quando ela esbarrava as mãos ágeis em seu sexo, ele também sorria. Raramente acontecia, nestas horas, uma ereção completa, apenas um pequeno tremor movia seu pênis em plácido repouso.

Depois desses cuidados, ele sempre emitia alguns sons guturais em agradecimento.

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