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Miguel Sanches Neto

Poesia de brinquedo

Drummond de Andrade personalizava seus livros com dedicatórias em versos | Divulgação
Drummond de Andrade personalizava seus livros com dedicatórias em versos (Foto: Divulgação)

Contra os poetas ocasionais, há o poeta total, que transforma qualquer coisa em poesia. Poesia de baixa, média ou alta frequência, mas sempre poesia. Pertence ao primeiro nível o volume Versos de Circunstância, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), a maioria mantida inédita até agora. Drummond personalizava seus livros com dedicatórias em versos, e os fazia não apenas para fins imediatos, mas como parte – periférica, é bem verdade – de sua obra. Por isso, ao longo dos anos, recolheu em cadernos textos produzidos para saudar amigos.

Passadas algumas décadas, os poemas ainda funcionam como literatura, apesar de seu vínculo com o momento em que foram produzidos.

O que distingue essa modalidade lírica, do ponto de vista formal, é a singeleza. São versos cerzidos com a linha das rimas. A busca de rimas que ressoem o nome da pessoa homenageada é o motor dessa poesia. Isso faz com que o poema ecoe sempre um nome, mostrando a importância de seu dono para o poeta.

Chega! Por trás da cortina

Uma rima todo em ina

É tão vasto que amofina

A paciência da menina

A melhor rima, Regina,

Para teu nome é Celina (p.152)

O poema é assim uma glosa da relação onomástica entre Celina (a mãe) e Regina (a filha). É este rimário, aqui exacerbado, o centro das homenagens. O tom é de paródia em quase todos os poemas, pois o poeta quer antes de tudo brincar: brincar com as ressonâncias, brincar com a própria arte da dedicatória. Se, por um lado, ele faz textos lúdicos, que encantam os seus interlocutores privados, por outro ele desconstrói o espaço político da dedicatória.

Todos, de grandes escritores (como um Manuel Bandeira ou uma Lygia Fagundes Telles) a afilhados ou filhos de amigos se encontram neste mesmo parque de linguagem destinado a brincadeiras. Com isso, Drummond tira a sisudez do texto, instaurando um território maroto.

Também marca esses poemas o exercício do afeto. Cada palavra é manejada como uma celebração do outro. O poeta se faz menor para engrandecer o destinatário. Como são basicamente poemas que versam sobre o conteúdo dos livros do poeta ou de seus interlocutores, e poemas que enviam votos de boas festas, tudo tende para o bom humor. O poeta quer fazer rir, ligando-se assim a uma tradição infantil que era tão cara aos modernistas.

Dentre os recursos narrativos centrais, há também a referência ao endereço a que chegará o livro. Nomes de ruas e os números da casa são elementos de linguagem que criam uma conexão entre emissor e remetente, pois esta é uma poesia de correspondência, no sentido amplo da palavra – o poeta se corresponde poeticamente com seus amigos/leitores, unindo-se a eles por uma correspondência de alma.

Cantor de brincadeira, ele usa uma linguagem de violeiro para festejar a existência. São poeminhas bobos e comoventes, que mostram nosso poeta maior em uma versão divertida.

Mas em seu giro inquieto,

Ela vai levando afeto,

Modulando uma alegria,

Um projeto de bom-dia... (p.261)

Mais do que construções líricas, são "abraços rimados" (p.199), como ele vai confessar, numa irmandade criada a partir da leitura/produção poética, de uma defesa da arte como "pensamento comovido" (p. 236). Se não acrescentam grandes poemas à sua obra extensa, Versos de Circunstância recorda uma face de Drummond, para quem a amizade era a mais pura fonte de poesia.

Serviço

Versos de Circunstância. Org. Eucanaã Ferraz. Instituto Moreira Salles, 290 págs., R$ 55.

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