Contra os poetas ocasionais, há o poeta total, que transforma qualquer coisa em poesia. Poesia de baixa, média ou alta frequência, mas sempre poesia. Pertence ao primeiro nível o volume Versos de Circunstância, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), a maioria mantida inédita até agora. Drummond personalizava seus livros com dedicatórias em versos, e os fazia não apenas para fins imediatos, mas como parte periférica, é bem verdade de sua obra. Por isso, ao longo dos anos, recolheu em cadernos textos produzidos para saudar amigos.
Passadas algumas décadas, os poemas ainda funcionam como literatura, apesar de seu vínculo com o momento em que foram produzidos.
O que distingue essa modalidade lírica, do ponto de vista formal, é a singeleza. São versos cerzidos com a linha das rimas. A busca de rimas que ressoem o nome da pessoa homenageada é o motor dessa poesia. Isso faz com que o poema ecoe sempre um nome, mostrando a importância de seu dono para o poeta.
Chega! Por trás da cortina
Uma rima todo em ina
É tão vasto que amofina
A paciência da menina
A melhor rima, Regina,
Para teu nome é Celina (p.152)
O poema é assim uma glosa da relação onomástica entre Celina (a mãe) e Regina (a filha). É este rimário, aqui exacerbado, o centro das homenagens. O tom é de paródia em quase todos os poemas, pois o poeta quer antes de tudo brincar: brincar com as ressonâncias, brincar com a própria arte da dedicatória. Se, por um lado, ele faz textos lúdicos, que encantam os seus interlocutores privados, por outro ele desconstrói o espaço político da dedicatória.
Todos, de grandes escritores (como um Manuel Bandeira ou uma Lygia Fagundes Telles) a afilhados ou filhos de amigos se encontram neste mesmo parque de linguagem destinado a brincadeiras. Com isso, Drummond tira a sisudez do texto, instaurando um território maroto.
Também marca esses poemas o exercício do afeto. Cada palavra é manejada como uma celebração do outro. O poeta se faz menor para engrandecer o destinatário. Como são basicamente poemas que versam sobre o conteúdo dos livros do poeta ou de seus interlocutores, e poemas que enviam votos de boas festas, tudo tende para o bom humor. O poeta quer fazer rir, ligando-se assim a uma tradição infantil que era tão cara aos modernistas.
Dentre os recursos narrativos centrais, há também a referência ao endereço a que chegará o livro. Nomes de ruas e os números da casa são elementos de linguagem que criam uma conexão entre emissor e remetente, pois esta é uma poesia de correspondência, no sentido amplo da palavra o poeta se corresponde poeticamente com seus amigos/leitores, unindo-se a eles por uma correspondência de alma.
Cantor de brincadeira, ele usa uma linguagem de violeiro para festejar a existência. São poeminhas bobos e comoventes, que mostram nosso poeta maior em uma versão divertida.
Mas em seu giro inquieto,
Ela vai levando afeto,
Modulando uma alegria,
Um projeto de bom-dia... (p.261)
Mais do que construções líricas, são "abraços rimados" (p.199), como ele vai confessar, numa irmandade criada a partir da leitura/produção poética, de uma defesa da arte como "pensamento comovido" (p. 236). Se não acrescentam grandes poemas à sua obra extensa, Versos de Circunstância recorda uma face de Drummond, para quem a amizade era a mais pura fonte de poesia.
Serviço
Versos de Circunstância. Org. Eucanaã Ferraz. Instituto Moreira Salles, 290 págs., R$ 55.