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Miguel Sanches Neto

Sepultura de carneira dupla

Evito festas, onde a vaidade é o prato principal, sempre servida fria ou quente demais. Mas não deixo de comparecer a velórios e enterros, momentos em que somos mais verdadeiramente humanos. Na face de todos, mesmo na dos eternos piadistas, há espanto, abismo e sombra.

Muitas vezes, passo a noite no velório, aproveitando para conviver um pouco com a morte, essa menina que nos fascina e nos abisma. Sim, para mim, a morte não é uma senhora idosa, rosto cadavérico, manto negro, olhos só buracos. Mas uma bela moçoila com carnes estufando a roupa e riso de desdém para nós que envelhecemos. Sinto a morte na capela, percebo o vácuo que ela deixa ao se deslocar, imaterial, e não me intimido. Em alguns momentos, eu me arrepio – não de medo, e sim de desejo.

A morte nos seduz, faz um convite para que sigamos seu rastro invisível. E é bom saber que, mesmo tentados, resistimos bravamente, queremos ver no que a vida vai dar, e ficamos por aqui, nesse vale onde nada dura para se chamar eternidade.

Também sou freqüentador de cemitérios. Mas sem a menor morbidez. Tendo perdido o pai aos 4 anos, o cemitério sempre foi, para mim, extensão de casa. Recorria a ele, na ilusão de encontrar conforto na conversa unilateral com meu pai, todas as vezes que surgia algum problema mais urgente.

O cemitério faz parte de minha vida, é um espaço doméstico. Nós nos mudamos de Bela Vista do Paraíso para Peabiru porque meu pai foi enterrado nessa última cidade. Queríamos ficar mais perto dele. Depois, com minha partida, eu voltava ao menos em Finados para ver seu túmulo e me reencontrar com a cidade, reunida em torno de seus mortos. Confesso que me agrada esse espetáculo de fidelidade.

Em Peabiru, cidade de muita poeira, é difícil manter limpas as casas, mas muitos trazem os jazigos familiares rigorosamente em ordem. É que surgiu uma profissão nova – a de zelador de túmulo, um profissional que cuida de várias sepulturas durante o ano. Em Finados, tudo no cemitério está ainda mais caprichado e, em nenhum momento, sentimos o peso sombrio que se associa a tais lugares.

O cemitério vira então uma praça onde as pessoas se encontram para rever os amigos antigos, deparando-se com rostos intactos nas fotos fixadas nas cabeceiras das sepulturas. Costumo rir na frente desses retratos queridos, recordando passagens boas com os que estão ali.

As fotos mais comoventes são as das meninas de nossa época. Sim, elas representam a própria morte, despertando-me o desejo de partilhar, amorosamente, aquela terra. Não o amor que experimentamos aqui, nessa vida de aquém-túmulo, mas o amor de corpos que se desfazem juntos, na mesma lama, quando nos unimos de maneira radical, pois somos agora um solo só, uma só água, e juntos subimos ao caule das plantas e arrebentamos indivisíveis nas flores que crescem entre catacumbas.

Durante anos, voltei à cidade onde meu povo está enterrado para gozar dessa proximidade erótica com a morte. Percorria os túmulos, refazendo um caminho que já vai extenso. Não choro diante da memória material de quem amei, apenas rezo um pai-nosso, lembro-me de algo que me unia àquela pessoa e sigo à sombra de árvores que guardam um restinho daqueles mortos. Só que, de uns anos para cá, não tenho tido vontade de voltar.

– A morte, essa menina, está cada vez mais sedutora – zombo de mim mesmo.

– Não, não é isso – eu me respondo. – Simplesmente já não tenho idade para flertes.

Mesmo distante de Peabiru, nos últimos Finados saio meio a esmo em busca do cemitério ancestral. Ao divisar um, paro o carro, compro flores das mulheres instaladas na entrada, e procuro um túmulo abandonado, desses tomados por ervas daninhas, sem placas de identificação e com rachaduras que nos lembram que até a morte morre. Posto-me diante desses sepulcros em estado de esquecimento, rezo, deixo as flores, que destoam muito da lápide carcomida, e fico pensando em meus mortos.

Estava em um desses rituais quando uma pessoa me tocou o ombro. Virei-me para uma jovem exuberante, com cabelos encaracolados e úmidos, indicando que acabara de sair do banho.

– Você sabe de quem é esta sepultura? – ela perguntou.

Fiquei com medo de dar qualquer resposta. Ela poderia dizer, por brincadeira ou a sério, que era dela. E eu acreditaria para sempre. Senti minha coluna crescendo, os pêlos dos braços se eriçaram, aumentou meu batimento cardíaco. Não, não abriria a boca. Devia sair dali imediatamente. Não olhar mais para a menina, ah, essa eterna menina, minha constante vizinha.

– Não quer mesmo saber? – ela insistia.

Tentei em vão me mover. Queria gritar para que ela fosse embora. Organizei mentalmente a frase e saiu o inverso do que eu pretendia expressar:

– Diga logo de uma vez!

– Nós é que estamos enterrados aqui.

Nesse momento, meu corpo voltou a me obedecer e, com toda força, dei um tapa no rosto da menina. Ela me olhou irada e silenciosa, e saiu distraidamente entre túmulos como quem passeia por um jardim florido.

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