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Miguel Sanches Neto

Tempo das aprendizagens

As pessoas viam nele um homem realizado, mas ainda lhe faltavam tantas coisas.

– Não diga isso, você tem mais do que precisa para viver – repreendeu-o sua mulher.

Ele sorriu. De que adiantava a casa, o apartamento na praia, os dois carros, as aplicações financeiras e o bom emprego? Numa altura da vida, há que se buscar outro tipo de desafio. Não argumentou isso com a mulher. Apenas suspirou.

– Faltam-me tantas coisas...

Ela chacoalhou negativamente a cabeça. Ele era um caso perdido. Reclamava de tudo. O que mais desejaria? Talvez estivesse pensando em trocá-la por uma dessas jovens turbinadas.

E os dois passaram a conversar menos entre si. Ele se afundou em seu mundo. Findo o dia de trabalho, ficava pelo escritório. A secretária ia embora, ele fingindo mexer em processos, mas assim que se via sozinho, abria a gaveta e pegava giz de cera, lápis de cor e um caderno de desenho. Tudo comprado às escondidas numa papelaria do centro.

Os filhos estavam fazendo faculdade na capital, ainda não possuía netos, mas alegou que o material era para os filhos de um empregado. Não precisava se justificar perante o vendedor, mas ele morria de vergonha daquele ato extemporâneo.

No escritório, a primeira tentativa foi frustrante. Rasgou folhas, irritando-se, mas no outro dia começou do zero. Perto dos cinqüenta anos, ele estava se iniciando na arte do desenho. Quando criança, não aprendera muita coisa nesta área. Conseguia com esforço fazer uma casinha mal-dimensionada, a fumaça saindo da chaminé. Os trabalhos de arte eram feitos pela mãe, por isso talvez nunca tenha conseguido progredir. Depois de formando em Direito, habituou-se a comprar quadros. Tinha várias obras de grandes artistas em casa. Mas elas não o satisfaziam mais. Queria agora ter coisas feitas por ele mesmo.

Por isso voltava à pré-escola, para povoar cadernos que devia ter preenchido naquele passado remoto. Era sua vida secreta. Fez desenhos grotescos de casas, prédios e objetos, não avançando muito nesta fase. Então, veio a idéia de desenhar-se a partir de uma foto antiga. Só podemos representar o que trazemos em nós. Não havia nenhum rosto que ele conhecesse melhor do que o seu. Todos os dias, no espelho do banheiro, passava um bom tempo contemplando-se. Olhava-se no retrovisor do carro, durante os deslocamentos pela cidade. Não resistia ao próprio reflexo nas vitrines das lojas. Sabia cada expressão de seu rosto, por isso odiava as imagens erradas que os fotógrafos faziam dele.

Durante semanas, foi aperfeiçoando seu traço. E ficou feliz com o resultado. Seus auto-retratos tendiam para a caricatura, mas eram fortes, e tinham um vínculo consigo mesmo. Na escala de valores artísticos, estavam nos patamares iniciais, mas para ele eram uma vitória. Quem não sabia nada de desenho agora conseguia ao menos se representar.

Havia ainda uma outra frustração. Não conseguia fotografar. Tímido, inibia-se com o uso da máquina, e fazia tudo errado. Com as câmeras digitais, não conseguia acertar os botões, sempre colocava o dedo na frente, tremia, desligava o flash, e mais uma série de trapalhadas. Por isso, quando via algum turista com a máquina na mão, desviava dele. Vai que inventasse de pedir uma ajuda.

Dominados os rudimentos o desenho, queria também vencer esta outra limitação. Comprou uma máquina e começou a tirar fotos de tudo em seu escritório. Até da lixeira de papéis sob a mesa. Depois, imprimia as melhores e guardava em uma gaveta. Ele queria se ver representado nas coisas de trabalho. Nos recipientes de lápis, no tapete do mouse, no cinzeiro cheio de moedas – já que ele não fumava –, nas poltronas, nos objetos das estantes... Ele estava em tudo. Tirou uma foto do teclado do computador, com as marcas de seus dedos, e deu o nome de in absentia. Era isso. Estava e não estava naquelas coisas.

Quando teve coragem, saiu pela rua fotografando a própria sombra. Ou os seus reflexos nas vidraças. Era uma nova possibilidade de se ver, como ausência, como miragem. Ali estava o seu corte de cabelo, sua cabeça em forma de cunha, os braços finos.

Um dia, sozinho em casa, tirou a roupa e fotografou a sua sombra nua na grama.

– O que está acontecendo? – perguntou sua mulher uma noite.

– Nada. Por quê?

– Você está quieto e feliz. Parece o menino que ganhou um presente proibido.

– Talvez seja isso.

É claro que ela pensou: esse desgraçado arrumou uma amante.

No dia seguinte, ele chegou sujo e sem gravata. A camisa perdera dois botões. A calça trazia um esfolado no joelho. Ela pensou em um assalto. O perigo de vir sempre pela mesma rua. O carro importado chamando a atenção. Quantas vezes eu já disse para você se cuidar mais. Um dia isso acabaria acontecendo.

Ele não comentou esses delírios. Foi direto ao banheiro, tomou um banho e ficou pensando que devia começar um regime se quisesse aprender a jogar bola no campinho do conjunto perto de sua casa. Os meninos tinham aceitado o intruso, que agüentara bem uns 10 minutos, mas depois se cansara. Não fizera nenhum gol. Mas já estava chutando a bola corretamente. Logo aprenderia a jogar, e não passaria mais vergonha diante de seus amigos de escola, que sempre o preteriam na hora de formar os times.

Apenas começava o tempo das aprendizagens.

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