A persona do artista é o principal mecanismo de formação de leitores. Segundo A. Alvarez (A Voz do Escritor, Civilização Brasileira: 2006), isso acontece porque, nas escolas e nas universidades, não se ensina mais a ler literatura, cabendo à mídia forjar ícones a partir de excentricidades. O autor se torna um marqueteiro de seu produto, como forma de sobrevivência num meio de festas literárias, entrevistas, oficinas e participação em programas de televisão, canais que drenam leitores para os títulos que de outra maneira passariam despercebidos. Com a consequência, segundo Alvarez, de que hoje "o artista não é mais alguém que use as suas habilidades e sua percepção para criar uma obra de arte com vida própria; não, ele é um showman, uma personalidade pública, cuja principal obra de arte é ele mesmo." (p.133). No caso do Brasil, isto é mais intenso dada a nossa tendência para a autobustificação (o termo é de Ivan Lessa) que a crônica permite. Neste gênero, o eu é a peça-chave, o que faz da crônica o lugar literário da construção de nossa personalidade pública.
E a grande personalidade pública da crônica brasileira Contemporânea é o poeta Fabrício Carpinejar. Borralheiro: Minha Viagem pela Casa traz crônicas rápidas e românticas, que giram em torno do papel do homem na relação, um homem agora alegremente do lar. Da comida à arrumação, do problema da diarista à recepção da mulher que chega do trabalho, do cardápio às táticas amorosas, da compra de roupas à ida aos salões para pintar as unhas, Carpinejar trata de questões antes tidas como femininas, sem deixar de falar de bebida, futebol, ereção, enfim, essas coisas de homem. No centro dessa aventura estão o autor e sua mulher, um casal moderno e divertido, que torna a vida conjugal de todos um tanto apagada. Por isso se tornam heróis domésticos.
Como construção, as crônicas de Capinejar têm grande agilidade. Usando as malícias do poeta, ele inverte pontos de vista, cria metáforas cotidianas, surpreende estabelecendo paralelos inusitados, sempre em frases afiadas. A sua crônica, na grande maioria das vezes, não é narrativa, mas dissertativa. O cronista se faz o filósofo da vida banal, e tira dela pequenas iluminações, como: "Amadurecer é não estar preparado" (p.239). Há uma recorrência dessas frases fortes, que sobrepõe os fragmentos ao todo da crônica. É a identidade do poeta habituado ao twitter que se manifesta nos melhores momentos que cada uma de suas crônicas tem.
Algumas, no entanto, funcionam como conjunto e não apenas nas frases brilhantes; nestas crônicas, o autor se revela em todo o seu potencial criador, como em "Greve", em que ele fala da necessidade de o poeta ter uma modelo nua para poder escrever; ou em "Cuidado com o Que Ela Sonha", uma história borgeana do perigo que representa a maneira como a amada nos vê nos sonhos; ou ainda na memorialística "Casinha de Salva-vidas", sobre um amor de verão que nunca termina.
Os textos do livro trazem sempre a mesma estrutura narrativa: uma sucessão de frases organizadas em torno de um tema, que o expandem de maneira acelerada. Uma frase puxa a outra que puxa a outra, criando um som monocórdio, em que as palavras não dançam, antes marcham. Há também uma obsessão pelo verbo ser, próprio para definir as coisas, uma vez que o cronista é essencialmente um divertido definidor. A repetição da primeira pessoal verbal é outra marca do texto, que vai assim construindo não apenas uma imagem do autor, mais um discurso amoroso sobre ele próprio, dentro da lógica de valorização da marca: "Acreditei em mim porque ninguém iria acreditar em meu lugar" (p.238); "Não é fugindo que me tornarei importante na minha vida. / É amando o que me faltava amar: eu" (p.238). Com este amor ao próprio eu, teorizado em cada uma das crônicas, e um visual performático para aparecer em público, Carpinejar fez a fusão de literatura e showbiz.
Serviço: Borralheiro: Minha Viagem pela Casa , de Fabrício Capinejar. Bertrand Brasil, 256 págs., R$ 29.
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