Uma das frases mais comuns entre as pessoas que estão na idade produtiva é: não tenho tempo.Esta afirmação (na verdade, uma negação) guarda algumas sutilezas. Declara isso principalmente aquele que tem mais tempo. Como não quer renunciar ao lazer, ao direito do ócio improdutivo (todo ócio é improdutivo), a pessoa decreta para si e para os outros que ela não consegue fazer isso ou aquilo. E em seguida passa várias horas na frente da televisão, entediada com os programas mais bobos, ou no bar, ouvindo conversas fiadas. De fato, para este indivíduo superocupado falta tempo. Não poderá dar conta de coisas que esperam dele ou que ele gostaria de tentar. Tudo pode aguardar. Para que pressa? Lavar a louça do jantar hoje? Não, isso pode ficar para depois, agora gostaria de ver um filme B na televisão porque preciso relaxar um pouco. Parece que este livro que comprei é muito bom, mas ler enquanto sei que meus amigos estão falando de política no bar? Nem pensar. E depois ler me dá um sono danado.
Taí. Quem não tem tempo para o trabalho também gosta de dormir bastante, avançando na manhã civil, atingindo a marca da hora do almoço.
Preciso no mínimo de 10 horas contínuas de sono gosta de alardear.
Cumprir horário é outra coisa abominável para esses príncipes. Acham puro provincianismo. Numa era agitada, com um trânsito horrível como este, você querer que eu chegue na hora é no mínimo uma afronta. E além disso, reuniões de trabalho são sempre improdutivas. Assim, ele desqualifica todos e se coloca numa posição bem acima da manada. Não cumpre horário por uma questão de inteligência.
Mas, felizmente, em oposição aos esbanjadores de tempo, há os desprovidos de ócio. Esses conseguem honrar todos os compromissos, mesmo não lhes restando a menor folga. Mal recebem uma tarefa, já começam a executá-la, pois sabem das muitas obrigações que recaem sobre o seu lombo.
Por uma fatalidade de formação, pertenço a este segundo grupo de pessoas. Não há intervalo entre um compromisso assumido e o trabalho que precisa ser feito. Saio da reunião já pensando em como executar aquela incumbência. E não me permito descansar enquanto não vejo o final de uma tarefa, impondo-me sempre um marco no trabalho diário, um marco um pouco além de minhas forças. A minha é uma cabeça de operário. De quem ganha por metros de piso assentado e não pelas horas cumpridas em repartição pública, onde desgraçadamente dou expediente.
Quando publico MAIS UM LIVRO (!), apesar das muitas obrigações, de levar os filhos à escola, de escrever para revistas e jornais, de lavar a louça depois do jantar; quando preparo um ensaio sobre um tema teórico qualquer apesar de ler os lançamentos de literatura nacional e estrangeira, de anotar a vida em um diário indigno, de fazer muitas viagens de trabalho; quando executo os projetos que me são importantes apesar das muitas coisas a que a vida me obriga, sempre vem a pergunta:
Onde você arranja tempo para escrever?
Primeiro, tempo a gente não arranja. A gente cria. É mais uma questão de economia. Quando se passa por uma crise, cortam-se as despesas supérfluas. Sou uma pessoa em permanente crise financeira. Não posso gastar com bobagens. Diante dos muitos projetos, da imensa biblioteca disponível em língua portuguesa (única língua em que leio), e já tendo avançando na meia-idade, o capital tempo me é cada vez mais escasso.
Numa divagação ficcional, Henry James imagina um escritor que participa de todos os eventos sociais, que tem uma glamurosa vida mundana, e que mesmo assim constrói misteriosamente uma vasta obra. O conto em que o mestre do detalhe trata deste tema é "A vida privada". O enigma se desvela no final o escritor teria um duplo que, escravizado ao quarto escuro, escreve a obra que o homem público assinará. Como metáfora, o conto é perfeito. Todo escritor tem uma face privada e outra pública, uma que vive nas sombras e outra sob as luzes, e é aquela que produz a obra, enquanto a outra apenas a representa nos cenários sociais. Mas não existem duplos autônomos.
Ajudado pela insônia (insônia significa: não se dorme enquanto não forem cumpridas as tarefas do dia), por um senso do essencial, por uma disposição matinal para o trabalho, tenho sido um homem sem tempo por justamente criar tempo para tudo. Não vejo tevê, não me permito participar de festividades, acompanho apenas os melhores filmes do ano (3 ou 4, no máximo), tentando ver os clássicos indispensáveis, não me deixo fascinar pela internet, respondo de forma breve e objetiva os e-mails, desconheço as divisões entre dias de trabalho, feriados e finais de semana, ando sempre com um livro na mão (aproveitando o tempo no sinaleiro, os momentos de espera de uma reunião, que sempre atrasa!, a hora de abrir o portão da escola dos filhos, a mulher que parou na padaria) e também com um caderno, onde anoto uma idéia, uma frase, um trecho lido.
Mal chego em casa, se tenho alguma percepção mais aguda de algo, e cometo uma crônica, um conto, um começo de romance. Não desperdiço nenhuma idéia, nenhuma energia criativa acumulada. E faço isso em meio aos muitos trabalhos, às múltiplas obrigações, aos atormentantes telefonemas sobre os mais variados assuntos, pois não há uma separação entre o homem privado e o homem civil, eles são dois num único corpo, numa única temporalidade.
Também me perguntam frequentemente se não gostaria de ser apenas escritor. Digo que não, pois tenho medo de aí, sim, não me sobrar tempo para escrever. Quem tem muito capital acaba esbanjando. Enquanto quem não o tem conta e reconta cada moedinha que recebe.
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