"Senhores", disse o cão que tinha tomado o microfone da presidência da Câmara, "falo em nome de milhões de animais".

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Ninguém percebera como ele tinha entrado no prédio e de que forma se aproximara da mesa, afastando os deputados. Era um cão de pelagem branca encardida, com musculatura firme e dentes afiados.

"Foi preciso muito sofrimento para que nós gerássemos um animal com o dom de falar. Eu me preparei a vida inteira para esta hora. Estou velho, tenho 15 anos, vocês não sabem o peso desta idade. Andei por todos os cantos da cidade, vi cães e gatos abandonados, cavalos de catadores de lixo sendo explorados por homens que não são piores do que os senhores. Nestas andanças, tive que fugir dos empregados da prefeitura que nos caçam, enfrentar brigas por fêmeas, pois também temos nossas fraquezas, e vencer sozinho sarnas, rolando na terra e na areia, sobreviver a infecções intestinais provocadas pelas comidas podres das lixeiras, mas nada foi mais degradante do que o convívio com os homens. Sim, tive que freqüentá-los, em bares, cafés, teatros e até na igreja, não por gosto, mas porque precisava aprender o idioma dos senhores para tentar este relato".

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Neste momento, parecia que, de sua boca, ia sair um latido ou um uivo, mas o cachorro controlou a emoção e retomou as palavras serenas.

"Escolhi este dia porque está sendo votado o orçamento e os olhos do país voltaram-se para esta mesa. Não sei qual será meu destino, talvez me matem depois desta ousadia. Mas já sou um cão muito velho para me preocupar com o futuro".

Um funcionário tentou se aproximar com uma vassoura para espantar o intruso, mas os jornalistas presentes gritaram:

"Saia já daí e deixe o cachorro falar".

Isso intimidou o funcionário e causou embaraço em alguns deputados, eram frases fortes demais para serem pronunciadas ali. O homem se afastou sem que o animal precisasse emitir nenhum rosnado.

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"Quero falar dos animais que vivem abandonados nas cidades. Vocês fazem feiras de filhotes, vendem cães de raça, produzidos em série em verdadeiros laboratórios nazistas, mas não conseguem ter um único olhar de piedade para os que moram nas ruas. Incentivam o aumento do número de cachorros de raça, tão estúpidos quantos seus donos, e não percebem que nós, que passamos pelas maiores dificuldades, somos muito, muito mais inteligentes e necessários para a espécie de vocês. Conhecemos a vida, somos seres do mundo, temos os instintos de sobrevivência, guardamos códigos genéticos milenares, aprendemos a viver dos restos, nas piores condições, e vocês só valorizam os cães vitaminados. Eles são fiéis porque não querem perder as regalias. Mas nada sabem do que acontece fora dos muros, tão iguais aos filhos de vocês – fracos apesar de fortes, imbecis apesar de informados, doentes apesar de tanta comida pretensamente saudável. Esses cachorros estão morrendo de enfarto e de câncer como vocês todos".

"E o que você quer? Que soltemos nossos cães?" – perguntou um deputado de oposição, apenas por hábito de contestar, sem convicção nesta defesa dos cachorros de raça.

"Não, não é o caso de soltar esses cães, pois seria um genocídio, eles não sobreviveriam muitas horas num mundo sem rações, vacinas, canis e cercas. Não queremos isso. Mas não entendemos por que vocês nos caçam e nos matam, nós que trazemos as experiências de milhares de gerações, e idolatram esses cães tão abobados".

"Porque vocês são um perigo social, aumentam muito rapidamente, como os pobres, e logo estarão tomando conta das cidades" – respondeu um deputado de direita.

"E também porque trazem doenças" – complementou o deputado de oposição, que gostava de ter sempre a última palavra em qualquer debate.

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"Nós trazemos as doenças do mundo porque o mundo não nos cura. Os cães de vocês trazem as doenças dos próprios donos, que são muito mais perigosas. A principal delas é o egoísmo".

Todos ficaram em silêncio.

"E o que o ‘senhor’ quer?", uma jornalista não sabia como se dirigir àquele cão.

"Queremos que vocês suspendam as matanças dos animais abandonados. E que proíbam a reprodução em série de bichos apenas para fins comerciais. As feiras de animais são as grandes reponsáveis por nossa situação. Antes, toda família tinha animal comum em casa e as crianças gostavam de nós, mas, com as feiras, e suas propagandas sobre superioridade racial, toda a atenção passou para os animais com pedigree. E nós fomos substituidos por cachorros tão cobiçados como aparelhos de celular. No final de cada feira, aumenta o número dos cães sem-dono".

"Não posso admitir que alguém venha a esta Casa minar a iniciativa privada, responsável pelo desenvolvimento do país. As feiras são um mercado gerador de empregos diretos e indiretos. Sou favorável à campanha maciça de esterilização", disse um deputado conhecido por defender interesses empresariais.

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A sessão ficou agitada, as pessoas já não estavam pasmas com o cachorro falante, vindo direto de alguma fábula.

"Por que não esterilizam os cachorros com pedigree? Porque eles dão dinheiro, são um negócio. Vocês só raciocinam em termos de mercado. Mas pensem nos milhões de cães abadonados. Também temos direitos. Queremos voltar aos quintais, receber e dar carinho. Temos uma sabedoria enraizada no tempo e na cidade dos homens. Qual será o fim de um povo que abandona antigos amigos e acolhe os pequenos monstros criados por um desejo de perfeição? Não deixem que as autoridades sanitárias sacrifiquem diariamente milhares de cães e gatos de rua, que se reproduzem assim porque vivem promiscuamente em..."

Neste instante, uma pedra, vindo não se sabe de onde, atingiu o lombo do cachorro, que pulou da mesa e saiu ganinho pelos corredores. Todos ficaram aliviados. O cão, em sua fuga, não disse uma palavra de indignação.