Do outro lado da pista que corta a cidade morava apenas a parcela mais pobre da população, dividindo o espaço com cerealistas, silos agrícolas, chácaras e oficinas mecânicas. Foi lá que o menino passou sua infância, na casa localizada na última rua, fronteira com o campo de onde vinham agricultores, poeira (nos dias de sol) e barro (nos dias de chuva). Ele pertencia mais ao campo do que à cidade, crescendo num quintal com galinhas, porcos, hortas e árvores frutíferas. Ele divisava os morros cultivados por homens rudes e simples, com os quais se enontrava em suas expedições pelas propriedades rurais, extensão de seu quintal, de portões sempre abertos, permitindo a fuga do menino, que gastava os dias de folga pelas colônias, visitando rios, em festas caipiras e sítios de amigos. Nas cercanias, ainda existiam cerrarias com imensas toras largadas no pátio, sobre elas cresciam maracujás doces, pés de mamonas e capim. Os meninos brincavam naquelas toras como se estivessem num grande rio, descendo rumo ao desconhecido. Este rio, ele vê agora, de fato movia suas águas num sentido remoto, águas feitas de horas e dias, que o arrastavam sobre aquelas toras para o sem fim do tempo. Menino bobo, que gostava de ver o mato e seus milagres de pássaros. Menino quieto, em si mesmo perdido. Menino interiorano, que se internava em invernadas e sítios, mesmo sabendo que ele não pertencia a nada daquilo.
Durante anos, ele fugia de casa sempre por estes caminhos rurais, passava o dia ausente, num lugar e num tempo momentaneamente parado para sempre. Logo, as toras começaram a rarear nas matas e nas cerrarias. As invernadas deram lugar a plantações de soja. No canto da rua, os primeios conjuntos de casas populares começaram a nascer da terra que tudo dava e nada repartia.
Um pouco antes destas trasnformações, o menino começou a fazer o caminho inverso, para o centro da cidade. Cruzava o trevo perigoso, descia por ruas asfaltadas e ganhava a parte mais rica da cidade. As meninas ali eram bem-vestidas, havia o cinema, uma construção imensa, em que ele entrou pela primeira vez para ver "A Paixão de Cristo", e todas as demais para viver suas paixões pelas artistas. Tinha até bombonnière, primeira vez que viu esta palavra. Escadarias. Cortinas de veludo vermelho. Sofás da mesma cor. Ele então descobriu que era possível fugir de casa não pelo caminho que levava aos matos, mas pelo que o deslocava para a civilização. Com o cinema, ele se via fora de seu destino, e logo a televisão colocaria o mundo inteiro dentro de sua casa, infelizmente em preto e branco. Ele começou a pertencer à cidade, principalmente depois da primeira namorada.
Nas suas expedições urbanas, passava na frente de uma casa com traços retos, arquitetura moderna, pedras ornamentais em uma das paredes, gradil imponente e escadarias de mármore levando à sala no andar de cima. E ouvia o barulho de pessoas se atirando na piscina protegida por muro alto. Para ele, aquela casa e seus donos eram a civilização. Eles viviam como no cinema. Uma das filhas, magra e belíssima, acabaria se tornando modelo e nunca mais voltaria à pequena cidade. Ele tinha, antes de todos, sentido quanto havia nela de apelo cosmopolita. Era o inverso do mundo agrícola, com suas filhas de calcanhar rachado, mãos ásperas e vestido de chita.
Depois de tantas fugas imaginárias, o ex-menino conseguiu deixar a cidade, usando a mesma rodovia que durante sua infância o separava da existência um pouco mais requintada.
As águas continuaram movendo toras, modificando as coisas. Os pais do menino, antes pobres, fizeram algum dinheiro. Muitas fortunas foram levadas não pelo rio, mas pela enxurrada. Famílias ricas partiram, deixando apenas rastros de seu poder. E como não existe acaso, os pais daquele menino sonhador acabaram comprando a casa que, no passado, ele tanto desejara. O menino não queria a casa, e sim o estilo de vida, as possibilidades de futuro, os vínculos com o vasto mundo.
Ele agora passa temporadas na construção que de certa forma tinha sido dele em outro tempo. Seu desejo, nunca confessado a ninguém, fora tão forte que lhe dera, mesmo que tarde, a posse de algo destinado a ele de forma mágica. Agora pode freqüentar seus cômodos. Sua filha fica no quarto, ainda com os velhos móveis, que pertencera outrora à moça que seguiu carreira de modelo. Ele, em um dos quartos dos irmãos dela. Na imensa sala de pé-direito alto, a estante em que a outra família exibia porta-retratos foi povoada pelas fotos de sua gente pobre.
Ele estaria então vivendo fora do tempo uma passagem perdida de sua infância, dando concretude a fatos que sua imaginação criara? Ele era um sonho do menino? Estava ali, neste improvável agora, como espectro? Era um fantasma inventado por seu passado? Quem subia as escadas de mármore do vistoso sobrado? Ele ou seu desejo incontrolado?
A cada ano, ao visitar a casa que seu sonho usurpou dos verdadeiros donos, ele nota modificações. Primeiro, seus pais, alegando-se velhos demais, fecharam a piscina. Ele ao menos teve tempo de aproveitá-la em uma temporada. Depois, a grama do jardim foi arrancada e sugiram pés de mandiocas, canteiros de couves, mamoeiros e bananeiras. Por fim, foi cortada a alameda de cedros ornamentais e no lugar ergueu-se um forno de barro. Não era mais a antiga casa. O mundo agrícola se expandia assustadoramente. A cidade tomada pela roça.
Seu sonho não tinha tido força para impor-se. Definitivamente, ele devia ir embora.
Deixe sua opinião