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Sant’Anna : narrativa que problematiza o projeto literário Amores Expressos | Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
Sant’Anna : narrativa que problematiza o projeto literário Amores Expressos| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Nenhum escritor moderno foi mais glosado do que Franz Kafka (1883-1924), talvez o centro da modernidade ficcional do século 20. Muitos livros fazem referência direta a ele, mas a velada é ainda maior. Praga e Kafka se confundem de tal forma que viajar para Praga é viajar para Kafka. Numa era de facilidades de locomoção, o escritor hermético se torna um artigo barato de consumo.

Resultado de um programa em que um escritor passa um mês em uma cidade para escrever uma história de amor, o volume O Livro de Praga: narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna não poderia fugir ao grande emblema local. A abertura do livro trata da estandardização da cidade moderna: "Não importa a cidade em que você esteja, Andy Warhol sempre estará lá" (p.9). O guru da pop art é assim símbolo do contemporâneo. As suas séries, a utilização de material jornalístico, a reprodução de imagens e os recursos técnicos para a criação artística apontam para o consumo de massa, não apenas de arte.

O narrador de Sant’Anna, Antônio Fernandes, tentará descobrir o que ele chama de uma cidade profunda, subterrânea, num contraponto a essa banalização da arte, da vida e das tragédias. Fernandes, alter ego do autor, é um escritor mandado a Praga para colher impressões para um romance, e está a serviço de um chefe. Homem informado, com uma concepção vanguardista de arte, ele busca experiências raras. Por isso se encanta com uma pianista que concede concertos performáticos para uma pessoa de cada vez, cobrando um valor de casa cheia. Entra aqui a discussão de um conceito de arte contrário à massificação. Fernandes se candidata a público, tem seu cadastro – artístico e financeiro – aprovado e participa de uma apresentação privada que vai da música mais banal, e arranjada eletronicamente, a uma sessão de sexo. O êxtase artístico dá lugar ao erótico.

O narrador conhecerá outras mulheres: uma suicida, momento em que o amor mais se aproxima da morte; a estátua de uma santa, numa reencenação do mito de Pigmaleão, em que o êxtase religioso se faz totalmente sexual; uma boneca de pano, na qual ele conjuga o amor infantil por uma menina; e uma policial que na rua exibe autoridade, mas na cama gosta de apanhar. Em todas essas aventuras, que envolvem sexo e arte, Fernandes busca a outra Praga, distante da que foi preparada para satisfazer os viajantes. Mas uma delas coloca isso em dúvida.

Transformado em uma personalidade por se envolver com a suicida e ser denunciado pelos hóspedes do hotel sob suspeita de estupro de uma menor, Fernandes se faz um consumidor bizarro, e é procurado por um jovem viciado. Ele oferece a leitura de um texto inédito de Kafka, tatuado com letras fosforescentes no corpo de sua irmã. Juntos, os dois saem para uma área menos movimentada do centro. Enquanto espera num café o jovem que vai comprar drogas, o narrador conhece a dona, uma drag queen, e seu marido, um homem que se fantasia de Fernando Pessoa. Tudo ali seria então mera encenação?

No encontro com a moça tatuada, e não entendendo alemão, Fernandes recebe a tradução em francês de um texto supostamente de Kafka. O fragmento é de uma falsidade gritante, não remetendo ao estilo e ao universo do autor, tal como esses textos que circulam pela internet creditados a grandes escritores. Mesmo assim, o ato amoroso entre o leitor que paga caro pela leitura íntima e a mulher-texto se faz.

Tendendo para o paródico, tanto do ponto de vista da linguagem quanto das temáticas, O Livro de Praga funciona como uma primorosa ironia sobre a arte nos tempos de massificação turística. Não existem mais experiências profundas (à la Kafka ou Fernando Pessoa), a vanguarda ficou reduzida a performances pretensamente exclusivistas, quando não passa de réplicas criadas sob demanda. Sérgio Sant’Anna constrói assim uma narrativa que problematiza o próprio projeto do qual ele fez parte: apreender a cidade estrangeira com o olhar de quem a habita por um único mês. O seu personagem retorna ao Brasil não com um grande amor, ou uma experiência de arte, mas com um souvenir – outra boneca que lembra um espetáculo baseado em Alice, de Lewis Carroll.

Serviço

O Livro de Praga – Narrativas de Amor e Arte, de Sérgio Sant’Anna. Companhia das Letras, 144 págs. R$ 37,50.

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