Tenho me ocupado com a leitura de Graça Aranha (1868-1931), escritor de grande importância na modernização de nosso discurso literário, mas que não deixou obra que entusiasme. Antes, eu havia lido apenas o seu título mais famoso – Canaã, de 1902. Não sei bem por que me dediquei a este livro lá pelo final da década de 1980, quando não havia nenhum motivo profissional para isso.

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Talvez o tenha lido apenas por causa de uma imagem que ficou em minha memória. Eu era menino e gostava de vagar pela periferia de Peabiru, sonhando com as viagens de afastamento que logo começariam. Ausentar-me de mim mesmo, de minha circunstância. Em uma desses deslocamentos, chego à esquina de uma rua esburacada. Ergo os olhos para a placa no canto de uma casa e leio: Rua Graça Aranha. O nome me chama a atenção mas não faço a menor idéia de quem seja. Uma casa, uma placa, uma rua de terra, um pôr-de-sol, a minha infância. E um impulso secreto se eternizou em mim.

Quando li Canaã, eu já morava em Curitiba, o que me permitiu uma viagem de volta a uma colônia rural, à selva desbravada pelos colonos alemães, ao sofrimento desses pioneiros – coisas muito próximas de minha experiência biográfica.

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Reli o livro agora – e mais o resto da obra de Graça Aranha. Sim, foi uma leitura obrigatória. Há autores que só lemos por dever de ofício. O que não quer dizer que não nos sejam úteis. Obras cansativas também ensinam, e ensinam de uma forma mais agressiva do que as agradáveis. Saio da leitura do velho Graça com algum conhecimento novo. Mas o que mais me doeu foi a sua história de amor.

Ele não foi apenas um homem entre dois mundos – o heleno representado por Machado de Assis e o moderno capitaneado por Mário de Andrade. Foi um homem entre dois amores. Casado muito cedo com Maria Genoveva, a Iaiá, filha do Conselheiro José Bento de Araújo, Presidente da Província do Rio de Janeiro, o jovem talentoso e comunicativo, vindo de uma família tradicional do Maranhão, faz uma carreira rápida, tornando-se membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, amigo de Machado e figura decisiva na política nacional e internacional. Sua trajetória pública e afetiva se desenvolve à sombra dos líderes do país, que o colocam na diplomacia. Morando na Europa, termina de escrever Canaã com a ajuda da mulher, transformada em sua secretária.

Pelas fotos, Iaiá era uma senhora determinada, de feição um tanto robusta, mas que deixa o marido livre. Eles vivem distantes boa parte do tempo, pois Graça Aranha viajava muito por motivos de trabalho e de saúde, tratando-se de seus problemas nervosos em lugares de repouso.

A partir de 1911, ele mantém um caso não muito secreto com outra figura importante da economia e da política brasileira, agora de origem paulista – Nazaré Prado, filha de Antônio Prado, mulher casada mas que tinha a liberdade e o aprisionamento próprios de sua classe social. Graça Aranha escreveu mais de 3.000 cartas para a amante. Morto o remetente, Nazaré publica uma pequena coletânea delas, mas pelo caráter escandaloso da situação o livro é recolhido. Os dois vivem abertamente o relacionamento, mas sem poder se unir, pois as leis nacionais não o permitiam. Sofrendo esta situação, Graça Aranha se faz defensor do divórcio.

O interessante é que a sua correspondência com Iaiá o mostra sempre carinhoso. O amor de Nazaré não criou uma recusa da esposa. Ele fica assim dividido, morando em hotéis quando volta ao Brasil (principalmente no Hotel dos Estrangeiros), depois de se aposentar no Itamaraty, enquanto a esposa se integra à família da filha casada e ciumenta.

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Com a morte da sua mãe, em 1927, Graça escancara o vínculo com Nazaré e a transfigura na personagem Teresa, de A Viagem Maravilhosa (1929), uma mulher rica mas presa a um casamento de conveniência. O escritor se vê no jovem e liberto Felipe, como se ele próprio fosse um homem solteiro e não tivesse os cabelos prateados.

Até aí, essa história toda não havia me interessado muito. O que vem depois é que me derrubou. Ao morrer, a posse do corpo de Graça Aranha volta à esposa, embora ele tenha vivido os últimos anos com a amante. Iaiá, com a força de sua condição aristocrática, assume o papel de viúva e enterra o marido fugitivo, lacrando o seu túmulo para que a outra não descanse com o escritor. O poder do matrimônio permite que ela se vingue das traições públicas. O marido passará sozinho a eternidade – algo normal para ele, tão acostumado a hotéis. Estava concluída uma história de amor.

Mas o amor nunca está concluído.

Espírito moderno, mulher de iniciativa, Nazaré compra o terreno em frente ao túmulo de Graça Aranha e exige ser enterrada lá, fazendo companhia ao amado, sem a união completa, mas com grande proximidade, tal como foi em vida. Vizinhos, um continua olhando para o outro, apaixonadamente.

Iaiá foi enterrada no jazigo da família, junto com os seus ilustres antepassados. E todos descansam no mesmo cemitério – o São João Batista, no Rio de Janeiro.

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