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Eustáquio Gomes propõe a biblioteca como centro da experiência humana | Divulgação
Eustáquio Gomes propõe a biblioteca como centro da experiência humana| Foto: Divulgação

A biblioteca como síntese do mundo – esta parece ser a ideia borgeana que move a escrita de Eustáquio Gomes. Em seu livro de crônicas A Biblioteca no Porão (Papirus, 2009), ele heroiciza um leitor que exerce reverência total à palavra escrita: "colecionador de impressos encantadores, aproximador de disparidades e, dentro do possível, organizador do mundo" (p.32). As crônicas de Eustáquio propõem a biblioteca como centro da experiência humana, entendendo que todo escritor deve, antes de mais nada, reinventá-la. O seu papel é o da abelha, que colhe em várias flores o doce para a colmeia. Ele se sente assim "fiel ao costume de servir ao leitor o mel de minhas leituras" (p.78).

Esse papel de coletor do melhor não forma apenas o leitor apaixonado, mas também um escritor que exerce a ficção como uma oportunidade de aproximar livros distantes, de ordenar mundos imaginários, tal como se pode ver em sua recente novela – O Vale de Solombra (Geração Editorial, 2011). Nesta narrativa, o resumo do mundo está numa loja de livros usados, onde o passado ainda não terminou de acontecer, criando vias de comunicação com as pessoas que ocupam de maneira instável o tempo presente. Ler um livro que foi contemporâneo de um escritor ou leitor morto há décadas é uma forma de suspender a passagem do tempo.

Em capítulos curtos, na melhor tradição oswaldiana, Eustáquio Gomes conta a história de Benjamin, um velho judeu – essa etnia livresca por excelência – que vaga pelo interior em busca de obras especiais. Ele entra em contato com o dono de um sebo, um homem pragmático, que só acredita no real. A loja é um espaço de silêncios, misterioso por desdenhar o burburinho da História, criando passagens para outras temporalidades.

Mas a pressão da realidade não cessa nunca. Acossado por dívidas (não paga a pensão da ex-esposa), o livreiro Quintana é preso, solto, mas tem de fugir para não sofrer maiores constrangimentos. Na fuga, acaba sendo atropelado e seu corpo desaparece. É esse fato que instaura um mistério. Ele fugiu e forjou uma morte? Ou seu corpo se perdeu ao ser arremessado no rio?

O enigma só cresce na novela, pois, na segunda parte, vemos Quintana numa dimensão nebulosa, uma réplica dos Gerais de Guimarães Rosa, um passado que recebe os refugos do hoje. Ele se move ali como fantasma.

Na terceira parte, os esclarecimentos desse mistério só o tornam maior. O corpo de Quintana é encontrado, embora a família receba cartas daquele passado no qual ele esteve e ainda continua existindo; e ficamos sabendo do testemunho de um casal de pescadores, que lembra que o livreiro foi atropelado mas depois fugiu. Ironicamente, o homem que só acredita no mundo físico, acaba submetido a uma existência mágica.

De onde vem essa energia? Para tentar responder isso é bom lembrar o primeiro título desta novela: Lemniscata. A chave para a compreensão do livro talvez venha daí. A lemniscata é o símbolo do infinito, e Guimarães Rosa a usa no final de Grande Sertão: Veredas. O narrador de Eustáquio explica o sentido deste símbolo: "a lemniscata não tem começo nem fim, percorrendo a si mesma numa órbita interminável – figurando o infinito" (p.24).

Esta Minas intemporal é habitada pelo túnel que os livros criam, permitindo a permanência num não espaço, onde inexistem pessoas, apenas personagens, atraindo-nos para suas existências impalpáveis.

Em O Vale de Solombra desfilam inúmeras referências literárias, fundadoras para Eustáquio Gomes, este mineiro exilado em Campinas, que volta à Minas edificada em nosso imaginário a partir de Guimarães Rosa. Minas se faz assim uma imensa biblioteca universal.

Serviço:O Vale de Solombra, de Eustáquio Gomes. Geração Editorial, 168 págs, R$ 19,90. Novela.

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