Ao chegar para a entrevista, Cristina se acomoda em uma poltrona e, ato contínuo, tira o blazer, usado sobre um vestido sem mangas. O braço cheio de cicatrizes é exibido sem pudor. Poderia ser apenas o gesto natural de quem está com calor mas no caso de Cristina Lopes Afonso é também uma atitude. Não se trata somente de não ter vergonha das marcas. Mostrar a pele recuperada do incidente que a deixou com 85% do corpo queimado é o jeito Cristina de ser.
Muita gente lembra de Cristina Lopes Afonso como a vítima do ex-namorado, que em 1986, em Curitiba, jogou álcool e ateou fogo ao corpo da moça, então formada em Educação Física. O crime, a dolorosa recuperação e o julgamento do criminoso foram notícia em todo o Brasil e no exterior.
De vítima, porém, Cristina não tem nada. Ela lutou para sobreviver, lutou para levar seu agressor para a cadeia ele foi condenado a quase 14 anos de prisão e há muitos anos luta para ajudar pessoas que, como ela, sofreram queimaduras graves.
Cristina se recuperou e se reinventou. A alma da moça do interior, nascida em família grande, criada com amor e amadurecida em firmes convicções políticas, não se esvaneceu na dor. Pelo contrário. Generosidade, alegria e amor pelo próximo são características que transparecem no olhar de Cristina, em seus pequenos gestos e na trajetória que ela construiu após o incidente.
Ela fala sem restrições sobre o fato. Na longa recuperação, entre inúmeros procedimentos de enxerto e reconstrução da pele, Cristina fez apenas cinco cirurgias estéticas. "Podia ter feito mais plásticas, mas preferi não". As cicatrizes são seu jeito de mostrar que venceu e que outros podem vencer. "É também uma espécie de filtro. Quem me olha com cara de horror... melhor nem se aproximar, né", confidencia, com um sorriso.
Conta que em nenhum momento, durante a recuperação das queimaduras, teve medo de morrer. Soube, depois, que havia sido desenganada pelos médicos diante da gravidade dos ferimentos. "Eu simplesmente não considerava a possibilidade de não sobreviver", resume. A morte apareceu bem de perto há um ano, quando, cavalgando, levou um tombo. "O cavalo me pisoteou. Cheguei ao hospital vomitando sangue, achei mesmo que ia morrer".
E aí, Cristina? "Daí que posso morrer hoje ou amanhã. Estou pronta. Digo: estou sempre pronta. Vivo cada dia com plenitude e gratidão. Se há uma coisa que o incidente me ensinou, é isso: viver cada dia, com a consciência de ser ferramenta para coisas boas, para um mundo melhor".
Nascida em Cianorte, Cristina hoje é vereadora em Goiânia, para onde se mudou após cursar Fisioterapia. Foi a mais votada na última eleição. Na capital de Goiás, ela é Dra. Cristina: fisioterapeuta, especializada em saúde dermato-funcional, atuante em diversos cursos superiores pelo Brasil, ela é também chefe do Serviço de Fisioterapia do Instituto Nelson Pícolo e Pronto-Socorro de Queimaduras desde 1991, além de ser sócia-fundadora do Sociedade Brasileira de Queimaduras. Cristina também criou um grupo de apoio, o Núcleo de Proteção aos Queimados. Como vereadora, trabalha na proposição de leis para ampliar e beneficiar a saúde do município, preside a comissão de Direitos Humanos, luta pelos direitos da mulher e contra a violência.
"A unidade entre as mulheres é fundamental para conquistarmos dignidade, para vencer a violência e o preconceito", afirma. É a mesma Cristina que, estudante universitária, participava de passeatas conta a ditadura.
Dra. Cristina precisa encerrar a entrevista. É chamada ao auditório do Teatro Guaíra. É noite de 17 de dezembro e ela será homenageada na solenidade do Hospital Evangélico, onde foi atendida há 27 anos.
Cristina se despede com um abraço apertado e deixa no coração da repórter a mensagem da qual ela é um exemplo vivo e pulsante. Devemos lembrar não apenas no Natal, mas em todos os dias, como ela: amor, gratidão e perdão curam, restauram e constroem um mundo melhor.