Não sei se é só uma coisa boa da minha cabeça ou, então, a consequência pura e simples da observação privilegiada fornecida pela opção mais folgada de modal de deslocamento. Fato é que, quando saio de bicicleta por esse meio do mundo chamado Curitiba – o que costumo fazer nos fins de semana –, tenho acesso a uma cidade bem diferente da (mal) percebida no dia a dia de carro e correria.
Descubro, por exemplo, um vagão de trem transformado em ateliê no Cristo Rei; os quintais profundos, polacos e italianos, da Theodoro Makiolka; os riachos que brotam de manilhas aqui e ali, revelando as “microbacias hidrográficas” de Curitiba sobre as quais falavam os livros de Geografia; a matilha sem fim que vez por outra tenta abocanhar minhas panturrilhas; e, especialmente interessante, uma “cortesia ciclista” que me leva a distribuir dezenas de saudações a confrades em duas rodas pelas ciclovias da região norte.
Pedalar sem pressa é ganhar uma oportunidade de fazer etnografia
Pedalar sem pressa, como descobri desde o retorno à magrela na idade adulta, é ganhar uma oportunidade de fazer etnografia. Nesse processo, fui adquirindo uma curiosidade especial pelos corredores, algo que talvez guarde relação com uma estranha percepção do outro, um tipo, coisa louca, de “interesse interespecífico” antropológico por figuras com quem compartilho espaços e que não pertencem à tribo pós-moderna que passei a representar como a minha.
Interessante notar os diferentes corpos, caras, roupas, esforços e sacrifícios envolvidos na corrida. É possível encontrar, por exemplo, verdadeiras “máquinas de correr”, criaturas magras e requeimadas de sol que somem pelos caminhos numa velocidade espantosa. Perceber, na tribo dos hipertrofiados que correm sem camisa, uma tendência dramática ao movimento lento e meio performático, especialmente coreografado para simular uma espécie de “efeito Rambo” de músculos tremulando. Notar, com a devida fleuma, as musas louras de academia, rabos-de-cavalo ao vento e passos saltitados de gazela, Dianas do Barigui tão inatingíveis, em seu poder, quanto a própria deusa caçadora.
E, é claro, afundar os olhos naquele oceano de gente absolutamente comum e meio fora de forma, eu e você resfolegando juntos pelas trilhas do Parque Tingui, correndo com galhardia ou lutando em desespero mântrico num balançar de pernas que pode representar tanto a vitória sobre a inércia quanto o último passo antes da rendição à imobilidade.
De resto, imagino (imaginação estranha, afinal) o quanto o antropólogo do futuro daria por uma única manhã de observação, sobre duas rodas ou não, de toda essa fantástica massa corredora.