Conta-se que, ao comentar Pequenas Memórias, autobiografia lançada em 2006, o escritor José Saramago afirmou ter tentado viver sem fazer nada que envergonhasse a criança que, um dia, ele havia sido. A frase é de uma assertividade incrível. Sejamos francos: não há quem não tenha do que se envergonhar. Felizmente, porém, a maioria absoluta é de vergonhas tolas, humanas e passáveis, passiveis do perdão e até do riso de qualquer criança. Coisas como comer aquele último pote de iogurte escondido por seu irmão na geladeira ou, então, enfiar o dedo no nariz no trânsito quando você acha que ninguém está vendo.

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A coisa fica mais complexa e mais triste quando a conduta confrontada é, de fato, vergonhosa. Como no caso dessa multidão de empresários e agentes públicos presos nos últimos meses e condenados pelas falcatruas de que, irritados e traídos, tomamos conhecimento. Dinheiro que não acaba mais entesourado em obras de arte que nunca foram apreciadas e em carros que, de tão caros, passam um atestado definitivo de cafonice e distanciamento da realidade.

Quando foi, afinal, que aquele piá boa gente virou essa desgraça que vemos no jornal?

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A coisa só não fica mais complexa (a tristeza é a mesma) porque esses criminosos só têm por hábito o arrependimento venal da delação premiada. E também se complicam porque tendemos a ver sua corrupção como um dado definitivo: corruptio ab ovo, se o meu latim não estiver muito esfarrapado.

A frase de José Saramago, contudo, é capaz de resgatar a questão filosófica sobre a origem da safadeza. Quando foi, afinal, que aquele piá boa gente virou essa desgraça que vemos no jornal? A filosofia e a teologia namoram explicações – a mera condição humana ou um satanás sulfúrico, de repente. Há quem diga que a resposta, no caso brasileiro, está no processo civilizatório, aquele movimento de transporte das proibições legais, definidas coletivamente, para o interior moral de cada indivíduo.

Sob essa ótica, teríamos tantos corruptos porque, ao fim e ao cabo, somos frouxos em relação à corrupção, inclusive a nossa própria de todos os dias – a inocente subtração do iogurte. Ou porque, tendo nascido em um ambiente no qual os limites entre o público e o privado não estavam bem definidos, o Brasil se convenceu de que isso é o normal.

Não há, porém, resposta fechada para a gênese da pilantragem, apenas um trabalho gigantesco e meritório para desconstruí-la. Nesse contexto, a frase confucionista de José Saramago seria de enorme valor. Pena que os criminosos, por mais eruditos que sejam, não costumam dar importância ao que realmente importa.

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