• Carregando...

Imagino que todo mundo já viveu a experiência: você abre um armário de tralhas e, de repente, encontra uma coisa maravilhosa de que nem sequer se lembrava. Uma caixa de carrinhos Matchbox, um cachimbo de raiz de roseira, uma faca com cabo de osso e até a carbureteira de um desconhecido antepassado dado à espeleologia. No mínimo, a desconfiança de parentesco com Howard Carter. Arqueologia doméstica em sua melhor expressão.

E você se pergunta como foi que aquele tesouro ficou durante tanto tempo soterrado por enfeites de Natal e peças de artesanato – cinzeiro de cerâmica, sistema solar de isopor – que não deram certo. Devolvê-lo à vida, portanto, é uma questão de pura e simples justiça estética.

Eu, por exemplo, encontrei por esses dias um antigo relógio de mesa, coisa mais linda esquecida em uma caixa de sapatos reforçada com durex. Recoberto, àquela altura do campeonato, por uma mistura de mofo e pó, salpicado de manchas esverdeadas e marrons que poderiam ser qualquer coisa.

Você abre um armário de tralhas e, de repente, encontra uma coisa maravilhosa de que nem sequer se lembrava

Imediatamente, é lógico, emergiu aquele fervor irresistível de limpeza que faz o horror dos antiquários. Que começa com um paninho úmido e, diante da dificuldade de desgrudar a craca da peça, dá lugar ao pano molhado, ao WD-40, à esponja de cozinha, à lixa e, finalmente, a um polimento radical com pasta de dente ou pomada Minâncora, que, como você leu em algum lugar, também serve para polir metais. No mínimo, vai ficar com cheiro de Minâncora.

Feita a limpeza, percebi que o relógio não era, assim, tão tranchã. Que a caixa de prata era, na verdade, cromada, que aquelas manchas verdes e marrons nada mais eram do que a camada de cromo se desfazendo, e que o vidro bizotado de um dos lados quebrou e foi trocado por um safadíssimo pedaço de vidro comum, ainda por cima colado com certa folga. Relíquia em desencantamento.

Pelo menos, a máquina estava funcionando. Dei corda, escolhi um canto da estante do escritório e deixei lá, à vista. E comecei a trabalhar na escrita do dia. E o tique-taque do relógio, de início tão sutil, foi ficando insuportável. Troquei de sala, enfiei o relógio embaixo de uma almofada, e nada. O próprio conto de Edgar Allan Poe, coroado por um alarme secreto que soou do nada e terminou com um pouco animador “tóin” de mola quebrando.

Falando grosseiramente, fiquei com o saco cheio. E o relógio, de início tão sublime, voltou à caixa de sapatos que foi devolvida ao universo dos cinzeiros de cerâmica e dos sistemas solares de isopor. Essa foi, enfim, minha contribuição aos arqueólogos domésticos do futuro.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]