Confesso que eu achava que haveria mais celebrações pela libertação de Palmira, antiga cidade da Síria, joia da Antiguidade, tomada pelos aniquiladores do Estado Islâmico há coisa de um ano. Bem sei que, por causa de nossas ofensivas e contraofensivas domésticas, o povo daqui anda pensando muito mais na destruição dos discursos que na dos velhos templos e estátuas de deuses zoomorfos. Também desconfio de que, no fundo secreto da alma, existe um desgosto meio paralisante face ao que foi demolido em Palmira, aquela força psíquica que faz com que a gente feche os olhos por uma fração de segundo quando deixa um prato cheio de macarrão cair no chão.
A despeito dessas condições, a despeito, inclusive, da mortandade envolvida no processo de libertação, celebrei Palmira. Com a crença meio cândida de que o que foi destruído pode ser refeito, reerguido, reesculpido, de que a “aura” a que se referia Benjamin quando falava das obras de arte pode retornar ao que foi tomado pela ignorância e é devolvido pela grandeza de espírito de quem crê na história. Foi assim, por exemplo, com as antigas cidades da Europa destruídas durante a Segunda Guerra Mundial, renascidas graças a um trabalho cuidadoso de prospecção de memórias. As igrejas medievais estão lá, mais medievais que nunca, e sua reconstrução recente virou uma única linha, um dado em meio à beleza.
O touro alado de Nimrod, que virou pó, há de retornar, nem que seja esculpido em uma impressora 3D
O touro alado de Nimrod, que virou pó, há de retornar, nem que seja esculpido em uma impressora 3D, com um conteúdo histórico a mais e o alerta para o fato de que a humanidade deve prezar mais seus acervos históricos.
Fiquei encantado, por exemplo, com a possibilidade de Palmira ser reconstruída com base nas ilustrações fotográficas de artistas viajantes do início do século 19, aquelas figuras românticas da melhor qualidade, que passaram por lá “digitalizando o cenário” a bico de pena. Ao fim e ao cabo, assim que a região tiver sido liberada da ira obscurantista do EI – e que seja libertada, também, das mãos do ditador Assad –, as coisas hão de ficar melhores para os arqueólogos e para a memória do mundo. Rezo para isso.
No que respeita à tecnologia, que ela seja cada vez mais usada no processo de duplicação digital da realidade, e que tudo o que venha a ser copiado ou “escanerizado” – de códices maias a escaravelhos egípcios, passando por receitas portuguesas e cantos quilombolas – seja compartilhado com o mundo. E que parem com essa coisa tristonha de destruir as coisas! Amém.