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Uma das obras acadêmicas mais interessantes que já li, no mínimo uma das menos suscetíveis àqueles momentos de incompreensão absoluta que atormentam o cientista humano bem-intencionado, é “Corpo e Alma: Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe”, do sociólogo francês Loïc Wacquant.

“Corpo e Alma” é a soma de trabalho acadêmico e trajetória de um pesquisador que, para investigar seu objeto de interesse – o gueto negro de Chicago –, se transforma em pugilista. Lutador de fato, com direito a horas de suadeira, soco no fígado, sparring, campeonato e até aquele assombroso “chulé de mão” que só conhece quem já calçou luvas de boxe muito usadas.

Depois de escrever o diário, o autor o guardou por alguns anos para ter a possibilidade de analisar a experiência

A lógica do sociólogo boxeador é interessante: como dificilmente os investigados aceitariam a presença de um pesquisador branco em suas vidas, seria essencial atacar o castelo a partir de um ponto nevrálgico. No caso dos guetos negros de cidades como Chicago, um desses pontos – o mais relevante histórica e simbolicamente – é o ginásio de boxe. Um espaço estruturante do masculino que gerencia e ordena o poder, a violência, o respeito ao corpo e a percepção dos valores transmitidos pelo exemplo das gerações anteriores; um espaço de escrita da história que pode, inclusive, representar a porta de saída do gueto.

Pois Wacquant mergulhou nesse universo e, para lidar com as dificuldades de estar lá, iniciou um diário que seria a matéria-prima de “Corpo e Alma”. Tomou gosto pela coisa, treinou forte, sangrou em campeonatos, honrou-se e foi aceito por seus pares. E só não largou o cargo de professor da Universidade da Califórnia pelo boxe graças à sabedoria de seu treinador, Didi, que observou a tolice de trocar uma vida branca, reconhecida e de classe média pelo purgatório de prazer e dor do boxe no gueto.

O mais sensacional: depois de escrever o diário e encerrar essa etapa da vida, o autor o guardou por alguns anos para ter a possibilidade de analisar a experiência de forma mais desapaixonada e crítica. E foi desse processo – a rara transformação, autorreflexiva, do sujeito em seu próprio objeto de pesquisa – que nasceu “Corpo e Alma”, de cuja missa, neste texto, não conto sequer um terço.

Em outras palavras, vale enormemente a pena ler, seja pelo frescor do contato com uma obra acadêmica cheia de élan vital, seja pela instigação a olhar para trás e examinar, com o olhar frio do investigador, as próprias realizações – algo que pode ser especialmente desafiador, por exemplo, para jornalistas e cronistas.

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