A arte da crônica reside, teorizo, em uma narrativa muito particular da realidade. Os fatos estão lá, filtrados e dobrados, virados do avesso em alguns casos porque as coisas passam, necessariamente, pela lente do cronista. Pode não implicar a notícia mais fidedigna do mundo, mas pelo menos há de entreter os leitores e de fazer a alegria dos antropólogos do futuro. A crônica, li em algum lugar, também abre espaço para a discussão da microrrealidade, aquelas coisas banais que as pessoas adoram contar, mas que, por falta de tempo e de um veículo mais artístico, acabam relegadas ao Facebook.
A teoria literária, enfim, justifica meu encafifamento da semana. Há algum tempo, confesso, me flagro desconcertado com as propagandas de perfume importado que passam na tevê a cabo. Não sei se por falta de traquejo aromático, a questão é que eu fico meio abestalhado diante das tais peças publicitárias.
Só um maluco, hão de pensar, para ficar de olho no roteiro de um reclame de 20 segundos. Em minha defesa, só posso dizer que são 20 segundos caríssimos, lançados em escala global com a missão de perfumar a realidade. De Xangai a Paris, de Moscou ao Umbará, as peças alcançam os amantes de perfumes e, de quebra, ainda alertam a desavisada massa de fãs de programas de restauro de carros para a importância de se presentear a esposa no aniversário e no Natal.
São 20 segundos caríssimos, lançados em escala global com a missão de perfumar a realidade
Os publicitários capricham: fazem uso de uma série de recursos interessantes, a começar pela qualidade dos cenários e das modelos espetaculares, e ainda apelam a uma narrativa baseada nos trailers de cinema. A verdade toda é apenas indicada, com direito a diálogos entrecortados pela locução impactante do mesmo speaker que, há 30 anos, narra os trailers dos filmes de ação do Tom Cruise. Para saber o fim da história, só mesmo comprando o perfume.
Some-se a isso música dos anos 50 ou 60, um par de histórias sem pé nem cabeça – um cidadão que dá de comer a uma girafa dentro de um castelo inglês ou uma jovem que foge do próprio casamento em um zepelim, por exemplo – e pronto. Tem-se a propaganda perfeita, pronta para ser lembrada pelo consumidor de perfumes e pelo intrigado cronista.
Só me pergunto o que diria Walter Benjamin – um apaixonado pelas chaves de leitura da civilização presentes em vitrines, cartazes e cartolas – das tais peças publicitárias. Provavelmente, acharia um grande barato, e saberia traduzir perfeitamente a relação entre a girafa, o Paco Rabanne e o consumidor brasileiro. Eu, inodoro, paro no desodorante Avanço.
Deixe sua opinião