“Dona Maria, a senhora poderia trazer um café para a gente?”, pergunto chegando à sala de reuniões. Dona Maria se aproxima, olhos baixos e cara amarrada – cara de contrariedade passiva –, examina o contexto e vai embora. Dali a pouco retorna, olhar pétreo, com a bandeja, as xícaras e as garrafas térmicas etiquetadas “com açúcar” e “sem açúcar”.
Quando ela sai, minha companheira de batente discretamente observa: “Rodrigo, não chame de dona Maria, mas só de Maria”. Como assim?! “É que, quando a gente chama de ‘dona’, ela se sente rebaixada. Acha que ‘dona’ é um tipo de esmola.”
Fico quieto, processando a informação. Ela continua: “Outro dia, quando eu a chamei assim, ela perguntou por que ninguém chama a diretora da empresa de ‘dona Ana’, mas só de ‘Ana’. E respondeu que não precisava do título”.
Até anteontem, o “você” era sinal de deferência. Hoje, dependendo do interlocutor, é até falta de senso
Na defensiva, observo para minha colega que o pronome de tratamento é uma forma de respeito ao trabalho duro e mal remunerado; que é até uma espécie de pedido de desculpas, uma compensação por um pecado histórico cometido contra os trabalhadores de limpeza e conservação. “A explicação é boa. Vai falar isso para ela”, escuto. “Chama de Maria e fim de papo.”
De volta à minha estação de trabalho, penso no caso como um bom exemplo das transformações a que a língua e os contatos pessoais são submetidos no contexto da cultura. É a tal dinâmica das sociedades. Até anteontem, o “você” – contração de um cerimonioso “Vossa Mercê” nascido na corte dos Borgonha – era sinal de deferência. Hoje, é só você e olhe lá: dependendo do interlocutor, é até falta de senso.
O mesmo tipo de inversão vale para xingamentos que trocaram a carga original de raiva por outra, de afeto, proximidade ou surpresa. A expressão “p... que pariu!”, por exemplo, é um coringa semântico de dimensões continentais, algo digno de ser explicado a todo estrangeiro que tenta aprender o português.
Voltando ao contexto empregatício, passei a chamar dona Maria de Maria, deixando a antiga deferência no arquivo morto dos velhos títulos. Reconhecimento, no caso, é tratá-la como igual, sem mais. E ela já me parece mais feliz com isso.
De resto, estou com ela. Eu mesmo, admito, não gosto de ser chamado de “seu”, “senhor” ou “doutor”. Não exatamente por questão de classe, mas por aquela lembrança secreta de que já não tenho 20 anos. Coisas do tempo.
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