É uma alegria comprovar a perspicácia dos grandes pensadores nas pequenas coisas da vida. Foi o que descobri no último domingo, quando, durante um passeio à Lapa, visitei a Casa Lacerda, exemplar arquitetônico soberbo de uma civilização brasileira abastada e espartana, sisuda e lúdica, periférica e, ainda assim, conectada com os elementos das grandes cidades de seu tempo.
Entrei no imóvel, calcei as pantufas de museu e, tão logo comecei a deslizar pelo venerável assoalho, percebi um estranhamento: a despeito de todas as peças preciosas que povoavam os ambientes – fotos de família, berços, vitrola, carrilhão, moedor de pimenta, cadeira de balanço, oratório –, fiquei com a incômoda impressão de que faltava algo.
Os cômodos de ligação teriam surgido nas casas senhoriais da corte de Luís XIV
Só fui me dar conta do elemento ausente na saída, quando, examinando de fora, lancei um último olhar para o interior do imóvel e me dei conta de que a Casa Lacerda não possui corredores, mas apenas cômodos que se comunicam diretamente uns com os outros: vestíbulo, salão, quartos, banheiro, cozinha etc. – algo curioso, em especial quando pensamos em nossas necessidades atuais de circulação doméstica.
De volta a Curitiba, vasculhei a estante atrás de A Sociedade de Corte, obra do sociólogo alemão Norbert Elias que busca explicar, entre outras invenções da modernidade, os tais corredores. Segundo Elias, os cômodos de ligação teriam surgido nas casas senhoriais da corte de Luís XIV, cerca de 200 anos antes da construção da Casa Lacerda, com a finalidade mais do que relevante de permitir a condução discreta do amante para uma alcova sem tropeçar no amante do próprio cônjuge instalado na alcova adjacente ou, então, para garantir que aquela reunião secreta marcada para o gabinete não acabasse no conhecimento de todos os moradores da casa e do país.
Dos castelos franceses, a novidade se espalhou para o resto das cortes europeias e, no século 19, para as casas burguesas britânicas. As passagens nos solares reforçavam a privacidade e, de quebra, segregavam os serviçais, que ficavam longe, em seus próprios cômodos, sendo acionados por meio de sinetas – iam e vinham, lépidos, pelos corredores. Daí para o gosto e a necessidade do homem comum dos séculos seguintes, foi um pulo.
A Casa Lacerda, contudo, parece ter ficado alheia à mudança, encapsulada em um território e em uma moral que trocavam amantes ou reuniões políticas secretas pela bulha das crianças, pelo ressonar dos avós ou pela presença física pura, permanente, dos empregados. Notável! Elias, desconfio, gostaria de ter passado uma noite lá nos velhos tempos – e eu também.
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