Meio da tarde de um dia útil. Correria pelo Centro de Curitiba: Marechal Deodoro, guichê, fila, folha de EstaR, elevador; amigo do peito que você cumprimenta de longe por falta de tempo; escritório de contabilidade. Você entra, conversa, toma um café meio sem-vergonha e pega uma caneta Bic, daquelas de corpo transparente que acompanham a humanidade desde a aurora dos tempos. Caneta azul. Preenche um papel qualquer, contrato, recibo, endereço que acabará esquecido no bolso de trás da calça. Percebe que sua letra, que nunca foi uma maravilha, está ganhando formas ainda mais estranhas, criptográficas, resultado da substituição quase definitiva da caligrafia pela informática. A assinatura, que já era esquisita, aderiu de vez ao movimento dadaísta. Documento preenchido, você se levanta e sai correndo, não sem guardar a caneta alheia na algibeira e sumir pelo mundo.
Com a devida culpa, até uma esferográfica de R$ 2,50 pode ser a pedra de escândalo
Fim da tarde. Chegando em casa, joga a bolsa de lado e esvazia os bolsos. Carteira, celular, chaves, moedas, bala de banana de Morretes meio amassada, caneta Bic tomada por empréstimo semiconsciente. Mais uma para aquele copo de canetas que nunca está à mão quando você precisa.
A prosaica Bic do dia, porém, tem algo diferente. Um pequeno pedaço de papel enfiado no tubo. Provavelmente, o nome da pessoa que ficou uma caneta mais pobre. Você vai conferir. E, em vez de uma identidade, encontra a definitiva mensagem bíblica – Êxodo, 20,15: o mandamento “não furtarás”.
Pausa reflexiva. A Bic, então, era uma pequena bomba de consciência, um anzol para fisgar o lambari pecador. Um portal, quem sabe, para uma percepção moral mais profunda: se fosse uma Montblanc, eu seria um verdadeiro ladrão? Ou o caso não é de valor, mas de valores? Com a devida culpa, até uma esferográfica de R$ 2,50 pode ser a pedra de escândalo.
Respostas ao caso – número um: na segunda vou lá e devolvo a caneta, sob a famosa alegação do “ops, levei sem querer”. Número dois: não devolvo e ainda crítico o fundamentalismo que perturba a discreta ciranda dos cleptomaníacos. Número três: levo a dita cuja para o escritório, deixo na caneca das canetas e espero algum gaiato morder a isca. Número quatro: escrevo uma crônica para a Gazeta do Povo contando a história, assumindo a culpa e me colocando em uma posição literária acima do bem e do mal.
É bem possível, enfim, que a caneta desapareça no turbilhão das gavetas, junto com as moedas de cinco centavos, a placa antibruxismo seminova e a pulseira Sabona. Descanse em paz, Bic fundamentalista.
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